quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Pombo-correio de volta à amiga da carta de assalto


É um alento ler uma carta sua assim, no meio de uma quarta-feira, bem no meio de tudo, chegando de assalto. Eu também sempre te escrevo cartas mentalmente e elas ficam ali como um diálogo com você que é quase sempre um outro Eu com quem falo de tudo. Mas, de repente, nem é de tudo, tenho medo de ser muito sem sentido e me pego nesse você falando comigo onde é que está a lógica, afinal, de tudo o que estou dizendo. Eu me disperso tanto, e você me ajuda a perceber o ilógico, e então nem é de tudo que falo. Mas, de repente, eu acabo falando porque você nem é exatamente esse sentido lógico e sim alguma calmaria da alma, porque nem mesmo responde sempre, às vezes só ouve e pronto. Nem chego a escrever essas cartas, porque é tão difícil organizar tudo sem fazer perder exatamente o sentido que tem: o Caos.

Engraçado que dias atrás também falei sobre morte e também foi com a minha mãe e nem se trata de morrer de verdade, mas simplesmente de se descansar disso que agora repete na minha cabeça numa palavra: o caos. E ela se assustou. De fato, não se fala nessas coisas. Aprendamos. Mas tanto caos passa por mim a todo tempo e eu quase sempre me esqueço de não me encabular. Porque sei que tem a coisa do vazio e, afinal, já ouvi mil vezes, de onde esperar algo diferente? Você já não sabe? E ele sempre me dá um soco e eu simplesmente me esqueço que não há descanso e que esse vazio antes de ser calmaria é cheio de choques. Uma agonia, de vazio só um nome enganador. Minha mãe disse: você é feliz. A gente vê que é. E eu pensei: é. Mas tem alguma coisa... Esse cansaço. Cansaço de que? Essa... Essa impossibilidade de quietude... Mas vai ver é isso que você disse e sempre diz tão bem: felicidade com melancolia. Só que acho que me vem mais melancolia porque é com meus pensamentos que fico o dia todo trabalhando. E então dá vontade de sair por aí e simplesmente fazer, porque pensar é melancólico. Mas tem os prazos e exatamente o lado de fora. E nem sei onde começa e termina o caos, porque ele é caos.

Dias atrás eu me peguei exatamente com a sensação da minha criança. Entrei numa sala de balé e fiquei ali, relembrando os passos de quando eu fazia plié e estique. E tentava uma ponta. Mas, sobretudo porque tinha música, o que importava era fazer de conta que o corpo apenas expressava aquela melodia linda de maneira leve. E, que nada. Não tem leveza coisa nenhuma: é pesado levantar a perna e falta fôlego e tem suor e dói tudo. De repente, só mesmo pra quem vê de longe é que tem leveza no balé. Porque tudo na realidade tem que ser assim: duro, concreto, cheio de choques e cansaços. Mas também é mentira que eu dancei. É que dias atrás no Campus da Ufg eu fiquei deitada dentro do carro vendo os prédios iluminados (era noite) e resolvi dançar balé. Porque ser criança é dançar balé. Mas depois de um tempo meu corpo se lembrou. Dançar balé também é pesado.

E eu nem sei bem o que é arte, porque sempre quis saber pra poder ser artista. E daí nem quero mais saber, porque arte não tem que ser isso. Eu danço balé, eu pinto quadros bem coloridos e toco muitos instrumentos. E esse caos acho que basta pra fazer alguma coisa assim, meio bela mesmo que feia, algum (sem)sentido. A arte tem só que... Tem que ter corpo e matéria também. Mas então alguma felicidade melancólica e doidice viram alguma estética quando a gente coloca corpo no meio. Mas, que coisa, a arte tem que poder não ser definição, porque pensar é cansativo e arte é descanso. Eu acho.

Eu também estou com saudade de você e dessas biografias que não acontecem e que se conta. Porque fatos já temos o bastante. Para saturar. E sentidos também. Às vezes penso que é uma maldição essa coisa de fatos e sentidos e pra que isso tudo...? Talvez justamente o que falta, como eu já sei e não admito, é justamente o corpo pra só viver e pronto. E deixar chover, sem melancolia nem nada, só mesmo ver a gota cair e tudo tão assim, dado de graça e em estado de graça. Por isso acho que felicidade tem a ver com calar a boca da alma que tem algo a ver com mexer o corpo e vai ver que esse choque do balé é de fato descanso.

Eu também estou com saudade e espero te ver antes do mundo acabar e, depois que ele acabar, a gente continuar se falando em nossas cartas quase diárias. Daí você me conta como é virar bicho ou a terceira margem do rio. E eu te conto algo sobre Neruda, porque acho que vou conhecer a casa dele e escorregar em algum poema lá.

4 comentários:

  1. Ah não, Juuuuu, você me fez chorar. Você e a Lian. Talvez porque não seja comum, em plena quarta-feira, a gente ler uma carta alheia assim... tão nossa também! Adoro ler essa amizade tão linda!!!! Bjo, saudade!

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  2. Engraçado você falar em terceira margem do rio. Eu não falei em terceira margem do rio, eu falei em terceira via. Mas talvez seja isso mesmo: um barquinho no meio do nada. Mais que barquinho: a ausência do barco. O mergulho. Tenho sonhado tanto com mergulho, esqueci de te dizer. Pesquisado fotos de lugares no mundo para se mergulhar. Talvez mergulho tenha sido o mais próximo da morte a que cheguei. Lembro de achar impossível que eu pudesse estar naquele universo oceânico sendo viva e no Planeta Terra. É quase como morrer.

    Então você vai mesmo pro Chile, virar poema de Neruda, enquanto eu viro bicho, talvez onça pintada, talvez arara ou jacaré. E a gente continua se escrevendo cartas, fazendo bolhas. A gente continua, porque bicho e poema no fundo são a mesma coisa.

    Enquanto a gente é gente mesmo (e gente é poema e bicho empobrecidos), ser gente cansa. Eu bem defendo o doutorado em dupla, para que pensamentos sejam bolhas de sabão e não melancolias desnecessárias. Agora é fase de escrever relatórios e não consigo parar de pensar que relatório nada tem a ver com o que eu acredito que seja o valor da universidade.

    Então é possível ser feliz, melancólica e doidinha (te vejo assim, também) e ainda assim viver? Ultimamente essa ideia tem rondado minha cabeça, parece óbvio, mas veja só: Eu sou uma pessoa possível. Eu existo. Tenho pensado muito nisso porque de vez em quando alguém implica com a minha cor. Trabalhando como modelo ou atriz, você não é uma pessoa, você é um perfil. "Quando pedem uma oriental, esperam uma pessoa branquinha", me disseram. Eu perco trabalhos por causa da minha cor, eu sei. Mas aí eu fico pensando: eu sou chinesa, o que faz de mim oriental. Ainda assim sou morena. Ainda assim tomo sol e fico mais morena. Ainda assim eu existo. Se eu existo, eu sou uma pessoa possível. Então por que não?

    Em algum mundo que é outra camada desse mundo mesmo, nós vamos à universidade e, em vez de entregar relatórios, dançamos balé. E é leve. E somos bicho e poesia. Porque é isso, Júlia. Nós somos pessoas possíveis.

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  3. É, nós somos pessoas possíveis. Sobrevivemos ao fim do mundo. Sobrevivemos mesmo.

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