É um alento ler uma carta sua assim, no meio de uma
quarta-feira, bem no meio de tudo, chegando de assalto. Eu também sempre te
escrevo cartas mentalmente e elas ficam ali como um diálogo com você que é
quase sempre um outro Eu com quem falo de tudo. Mas, de repente, nem é de tudo,
tenho medo de ser muito sem sentido e me pego nesse você falando comigo onde é
que está a lógica, afinal, de tudo o que estou dizendo. Eu me disperso tanto, e
você me ajuda a perceber o ilógico, e então nem é de tudo que falo. Mas, de
repente, eu acabo falando porque você nem é exatamente esse sentido lógico e sim
alguma calmaria da alma, porque nem mesmo responde sempre, às vezes só ouve e
pronto. Nem chego a escrever essas cartas, porque é tão difícil organizar tudo
sem fazer perder exatamente o sentido que tem: o Caos.
Engraçado que dias atrás também falei sobre morte e também
foi com a minha mãe e nem se trata de morrer de verdade, mas simplesmente de se
descansar disso que agora repete na minha cabeça numa palavra: o caos. E ela se
assustou. De fato, não se fala nessas coisas. Aprendamos. Mas tanto caos passa
por mim a todo tempo e eu quase sempre me esqueço de não me encabular. Porque sei
que tem a coisa do vazio e, afinal, já ouvi mil vezes, de onde esperar algo
diferente? Você já não sabe? E ele sempre me dá um soco e eu simplesmente me
esqueço que não há descanso e que esse vazio antes de ser calmaria é cheio de
choques. Uma agonia, de vazio só um nome enganador. Minha mãe disse: você é
feliz. A gente vê que é. E eu pensei: é. Mas tem alguma coisa... Esse cansaço.
Cansaço de que? Essa... Essa impossibilidade de quietude... Mas vai ver é isso
que você disse e sempre diz tão bem: felicidade com melancolia. Só que acho que
me vem mais melancolia porque é com meus pensamentos que fico o dia todo
trabalhando. E então dá vontade de sair por aí e simplesmente fazer, porque
pensar é melancólico. Mas tem os prazos e exatamente o lado de fora. E nem sei
onde começa e termina o caos, porque ele é caos.
Dias atrás eu me peguei exatamente com a sensação da minha criança.
Entrei numa sala de balé e fiquei ali, relembrando os passos de quando eu fazia
plié e estique. E tentava uma ponta.
Mas, sobretudo porque tinha música, o que importava era fazer de conta que o
corpo apenas expressava aquela melodia linda de maneira leve. E, que nada. Não
tem leveza coisa nenhuma: é pesado levantar a perna e falta fôlego e tem suor e
dói tudo. De repente, só mesmo pra quem vê de longe é que tem leveza no balé.
Porque tudo na realidade tem que ser assim: duro, concreto, cheio de choques e
cansaços. Mas também é mentira que eu dancei. É que dias atrás no Campus da Ufg
eu fiquei deitada dentro do carro vendo os prédios iluminados (era noite) e resolvi
dançar balé. Porque ser criança é dançar balé. Mas depois de um tempo meu corpo
se lembrou. Dançar balé também é pesado.
E eu nem sei bem o que é arte, porque sempre quis saber pra
poder ser artista. E daí nem quero mais saber, porque arte não tem que ser
isso. Eu danço balé, eu pinto quadros bem coloridos e toco muitos instrumentos.
E esse caos acho que basta pra fazer alguma coisa assim, meio bela mesmo que
feia, algum (sem)sentido. A arte tem só que... Tem que ter corpo e matéria
também. Mas então alguma felicidade melancólica e doidice viram alguma estética
quando a gente coloca corpo no meio. Mas, que coisa, a arte tem que poder não
ser definição, porque pensar é cansativo e arte é descanso. Eu acho.
Eu também estou com saudade de você e dessas biografias que
não acontecem e que se conta. Porque fatos já temos o bastante. Para saturar. E
sentidos também. Às vezes penso que é uma maldição essa coisa de fatos e
sentidos e pra que isso tudo...? Talvez justamente o que falta, como eu já sei
e não admito, é justamente o corpo pra só viver e pronto. E deixar chover, sem
melancolia nem nada, só mesmo ver a gota cair e tudo tão assim, dado de graça e
em estado de graça. Por isso acho que felicidade tem a ver com calar a boca da
alma que tem algo a ver com mexer o corpo e vai ver que esse choque do balé é
de fato descanso.
Eu também estou com saudade e espero te ver antes do mundo
acabar e, depois que ele acabar, a gente continuar se falando em nossas cartas
quase diárias. Daí você me conta como é virar bicho ou a terceira margem do rio.
E eu te conto algo sobre Neruda, porque acho que vou conhecer a casa dele e escorregar
em algum poema lá.
Vocês são muito lindas.
ResponderExcluirAh não, Juuuuu, você me fez chorar. Você e a Lian. Talvez porque não seja comum, em plena quarta-feira, a gente ler uma carta alheia assim... tão nossa também! Adoro ler essa amizade tão linda!!!! Bjo, saudade!
ResponderExcluirEngraçado você falar em terceira margem do rio. Eu não falei em terceira margem do rio, eu falei em terceira via. Mas talvez seja isso mesmo: um barquinho no meio do nada. Mais que barquinho: a ausência do barco. O mergulho. Tenho sonhado tanto com mergulho, esqueci de te dizer. Pesquisado fotos de lugares no mundo para se mergulhar. Talvez mergulho tenha sido o mais próximo da morte a que cheguei. Lembro de achar impossível que eu pudesse estar naquele universo oceânico sendo viva e no Planeta Terra. É quase como morrer.
ResponderExcluirEntão você vai mesmo pro Chile, virar poema de Neruda, enquanto eu viro bicho, talvez onça pintada, talvez arara ou jacaré. E a gente continua se escrevendo cartas, fazendo bolhas. A gente continua, porque bicho e poema no fundo são a mesma coisa.
Enquanto a gente é gente mesmo (e gente é poema e bicho empobrecidos), ser gente cansa. Eu bem defendo o doutorado em dupla, para que pensamentos sejam bolhas de sabão e não melancolias desnecessárias. Agora é fase de escrever relatórios e não consigo parar de pensar que relatório nada tem a ver com o que eu acredito que seja o valor da universidade.
Então é possível ser feliz, melancólica e doidinha (te vejo assim, também) e ainda assim viver? Ultimamente essa ideia tem rondado minha cabeça, parece óbvio, mas veja só: Eu sou uma pessoa possível. Eu existo. Tenho pensado muito nisso porque de vez em quando alguém implica com a minha cor. Trabalhando como modelo ou atriz, você não é uma pessoa, você é um perfil. "Quando pedem uma oriental, esperam uma pessoa branquinha", me disseram. Eu perco trabalhos por causa da minha cor, eu sei. Mas aí eu fico pensando: eu sou chinesa, o que faz de mim oriental. Ainda assim sou morena. Ainda assim tomo sol e fico mais morena. Ainda assim eu existo. Se eu existo, eu sou uma pessoa possível. Então por que não?
Em algum mundo que é outra camada desse mundo mesmo, nós vamos à universidade e, em vez de entregar relatórios, dançamos balé. E é leve. E somos bicho e poesia. Porque é isso, Júlia. Nós somos pessoas possíveis.
É, nós somos pessoas possíveis. Sobrevivemos ao fim do mundo. Sobrevivemos mesmo.
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