sábado, 8 de setembro de 2012

Belchior e eu: o delírio das coisas reais



"Eu quero é que esse canto torto, 
feito faca, corte a carne de vocês" 


 Preencher o vazio, negar a falta, reverter o negativo no positivo sempre envolve uma grande dose de transcendência. Ontem eu ouvia Belchior e ele dizia que quando veio do interior para a cidade grande trazia de cabeça a canção do antigo compositor baiano que dizia que tudo é divino, tudo é maravilhoso. Tratava-se da canção de Caetano. Esse divino e maravilhoso é transcendência, um escape do real que Belchior não tem mais interesse. Eu me identifico, porque também trazia comigo o divino e maravilhoso: o ser humano não como repleto do vazio e do negativo, mas o negativo como um momento que logo será revertido, porque no fundo todos somos divinos e maravilhosos. Tratava-se de uma leitura do Marx. De um divino maravilhoso que não tenho mais interesse e troco por uma outra postura, que talvez seja mesmo um outro Marx. De todo modo, é um outro jeito de sonhar.

Belchior repete isso: amar e mudar as coisas me interessa mais, eu não estou interessado em nenhuma teoria. A verdade sempre está firme com quem preenche todos os vazios. A teoria tradicionalmente sai da concretude: ela é essa transcendência de uma eterna possibilidade do divino maravilhoso. Esse divino maravilhoso que condena todo vazio, todo negativo, toda falta como um mero presente cruel e passageiro. A insistência no preenchimento condena eternamente todos os homens do presente. E é sempre uma condenação do outro: os outros são cruéis, negativos e cheios de faltas, mas o ser humano divino e maravilhoso sabe o caminho para tudo ser divino maravilhoso. O eu dotado da transcendência que condena a todos é no fundo um otimista e, porque não dizer, eterno positivista: ainda que sua teoria se coloque como reverso, ela cai no encerramento, no preenchimento do vazio como progresso. O meu outro Marx, o da dialética, mantém esse negativo: o vazio é para ele concreto, o que não nos impede de mudar as coisas. Eu disse ao Freud lacaniano: o insuportável do vazio é que ele é concreto, ele não é teoria. O vazio é real, posso pegar nele, posso senti-lo todos os dias no cotidiano da vida bruta e sem delírios e é por isso que o vazio é dilacerante, e é por isso que tendemos a cair no divino maravilhoso que sempre condena o outro e que dá ao vazio uma negação sempre absoluta, fantasiosa.

“Mas sei que nada é divino, nada, nada é maravilhoso, nada, nada é secreto, nada, nada é misterioso, não”, diz a canção de Belchior. Não existe maravilha, nem segredo e nem mistério: a vida é o que é, não há vazio a ser preenchido, não há um mistério a ser revelado que reverta o negativo. A vida é o dia a dia concreto é o “um preto, um pobre, um estudante, uma mulher sozinha, blue jeans e motocicletas, pessoas cinzas normais. Garotas dentro da noite, revólver: cheira cachorro, os humilhados do parque com os seus jornais. Carneiros, mesa, trabalho, meu corpo que cai do oitavo andar, e a solidão das pessoas dessas capitais. A violência da noite, o movimento do tráfego... Cravos, espinhas no rosto”. É esse o concreto do vazio, do negativo: humilhados no parque, trabalho, solidão, as pessoas cinzas e normais com seus cravos e espinhas no rosto. Nada é secreto nem misterioso. Por isso, “Eu não estou interessado em nenhuma teoria em nenhuma fantasia, nem no algo mais, nem em tinta pro meu rosto ou oba oba, ou melodia, pra acompanhar bocejos, sonhos matinais, nem nessas coisas do oriente, romances astrais. A minha alucinação é suportar o dia-a-dia e meu delírio é a experiência com coisas reais.” Não há nada de divino ou maravilhoso, as teorias são fantasia que buscam esse algo mais, são sonhos matinais daqueles que ainda não acordaram para a presença irrevogável da dureza das coisas reais.

Belchior nos canta essa concretude que diz: o vazio não vai ser preenchido, a salvação do negativo não virá, ele é parte do real. Mas insiste:“Eu sou apenas um rapaz latino americano, sem dinheiro no banco. Por favor não saque a arma no saloon, eu sou apenas um cantor.” E ele é apenas um cantor que diz a vida, a vida é que está repleta do negativo: “Não me peça que eu lhe faça uma canção como se deve: correta, branca, suave, muito limpa, muito leve. Sons, palavras, são navalhas e eu não posso cantar como convém, sem querer ferir ninguém”. Não convém falar sem ferir ninguém: todas as palavras sempre podem machucar, são como navalhas. As palavras de Belchior não tem escolha, a vida em si é cortante e dilacerante:  “não se preocupe, meu amigo com os horrores que eu lhe digo. Isso é somente uma canção. A vida realmente é diferente, quer dizer, a vida é muito pior”.


Esse Belchior que me fala dessa vida pior, me felicita com comunhão. Eu também não estou mais interessada em nada que resolva, estou mais ligada ao delírio como experiência das coisas reais, das pessoas cinzas normais. E isso nada tem a ver com abandonar os humilhados nos parques com os seus jornais e sim em abandonar a fantasia do preenchimento para a abraçar as mudanças possíveis e engendradas nessa dureza do concreto. “Tudo muda e com toda razão”: a vida concreta está sempre em movimento e, mesmo que nunca se preencha, sempre se transforma. Abandonar as fantasias, as teorias que sempre condenam o presente não é profetizar o terror: “longe o profeta do terror que a laranja mecânica anuncia, amar e mudar as coisas me interessa mais”. É simplesmente isso: amar e mudar as coisas, amar e mudar as coisas, sem a fantasia, sem o oba oba de um grande algo mais.

Amar e mudar as coisas é a imagem de dois policiais “cumprindo o seu (maldito)duro dever e defendendo o seu amor e nossa vida”. Desde uma postura no nosso dia a dia individual, cumprir a dura rotina sem abrir mão do amor e da liberdade é defender a vida, a vida simplesmente,  com toda a sua presença e falta. Não se trata de resolver, amar e mudar as coisas é tudo o que nos resta e tudo que também me interessa.

Longe das profecias extremistas, não estamos nem no bem, nem no mal. É tudo proibido ao mesmo tempo em que é tudo permitido: “até beijar você no escuro do cinema quando ninguém nos vê”.

Podemos até sacar a arma e atirar em Belchior pela sua aspereza de detonar nossas ilusões. Mas o vazio não é universal, lembra? Sem a repleta maravilha ou a repleta falta, podemos matar as fantasias e podemos matar Belchior ao mesmo tempo em que comparecemos em ambos (negativo e positivo) o tempo todo: Belchior também se compromete a nos oferecer algo de bom mais tarde:

"Mas se depois de cantar você ainda quiser me atirar, mate-me logo à tarde, às três que à noite eu tenho compromisso E não posso faltar por causa de você”.