segunda-feira, 18 de julho de 2016

Preciso andar


https://www.youtube.com/watch?v=HN0_mN7fWa8



O que emerge do lago profundo?

O que emerge do lago profundo? As linhas frágeis que costuraram os tecidos de uma vida. A agulha torta que um dia passeou entre suas poucas linhas engarranchando tudo com uma desordem despropositada. Os retratos em papel velho que desbotaram as dores de uma memória confusa. Algumas notas musicais vazias que sobraram daquela canção mal tocada no violão desafinado. Salivas que voaram sem cuidado e empestaram o ar de fumaça. Sorrisos que se esqueceram perdidos na graça de outrem. Aquela dança dos tambores que se queria interminável. O gato preto que nunca deu azar, mas sumiu em busca de uma comida mais quente. Os retalhos coloridos que não se descosturavam alegremente. O cansaço das notícias que ainda não sabem que são velhices. A formiga que boiou n’água antes de carregar sua folha até a casinha. Todos os anéis de prata tortos e perdidos nas horas correiras. Coraçõezinhos cor de rosa absolutizantes de uma delicadeza insuportável. Dedos mal educados que sabiam gargalhar. Temores daquele dia em que a alma pediu para ser pedra. Rodinhas do patins tímido das pernas gigantes. Mil tesouras sem corte e sem graça. A queda livre que entrou no estômago. As lágrimas disfuncionais. Os eternos cachorros que brincavam no quintal das roupas dependuradas. O tempo vagaroso. O tempo cego. O tempo impaciente. A força vã. A força geradora. A força . As delícias. As delícias.As delícias.


quinta-feira, 28 de abril de 2016

Saudades da minha avó

Tenho saudade daquelas tardes vazias em que o tempo se suspendia naquela imensidão de sala para tão poucas palavras... A cadeira de rodas girando no azulejo amarelado daquele chão descombinado com a pintura grotesca das paredes... Os papagaios velhos que já não conseguiam acompanhar tão bem a lucidez daquela senhora, cujas rugas tomavam mais o corpo do que o próprio rosto...

Aqueles olhos de sobrancelhas arqueadas, que resistiam a se quedar com o tempo, eram o único reflexo da verdadeira imensidão de lucidez que ela trazia por dentro. Minha avó... minha avó que não era vovozinha. Na minha tenra infância, os seus biscoitos de queijo quentinhos eram quase mais doces que a sua voz. Foi na idade adulta que fizemos nossos laços, foi naqueles dias em que eu compreendia cada vez mais nitidamente o significado da palavra solidão e me compadecia da tragédia humana dessa triste realidade que um dia há de açoitar a todos nós de algum modo. Solidão, lava que cobre tudo e nos sorri seus dentes de chumbo, que fica muito bem na poesia e muito dura na realidade. Aquelas pequeninas xícaras velhas esmaltadas sobre a bandeja da cozinha, esperando pelo café amargo que serviria as visitas, iam ficando cada vez mais sem uso. As cadeiras descombinadas e o sofá feio já não precisavam sair do lugar para encaixar os filhos e netos que outrora enchiam a casa em noites de domingo. Os papagaios velhos continuavam ali envelhecendo, cantando pouco e mal com a rouquidão que o tempo trazia, mal servindo, portanto, para substituir as visitas cada vez mais escassas. Me lembro quando aquela televisão tão odiada por ela começou a ser ligada. Primeiro, uma vez por mês. Depois, uma vez por semana. De repente, minha avó já era capaz de passar por cima de toda a sua ira contra a televisão e aceitá-la como companhia possível. O amargo ia ficando mais doce, tão doce que um dia presentificou-se de vez em uma diabetes que não queria mais partir.

Eu atravessava aquela trilha que levava da minha casa para esse recanto de minha avó e no meio da trilha, ao cruzar o portãozinho enferrujado, me sentia atravessar o portal para o universo paralelo. Como naqueles filmes de fantasia, mas muito mais intenso. Porque os filmes, afinal, nunca chegam aos pés da imensidão da vida. A fantasia era cheia de remendos em seus bordados delicados, que deixavam transparecer o quanto de delicadeza pode haver mesmo na mais dura das vidas. Aqueles paninhos bordados em linhas coloridas, com riscos de caneta azul nos fundos dos desenhos que ela fazia por conta própria e que acabava não submetendo-se por conta própria também, cobriam a geladeira, a banqueta de telefone fora de moda, a mesinha da imagem da santa, o armário da - tão odiada - TV e a penteadeira recheada de perfumes ressecados do quarto. Quando eu atravessava aquele portal, o universo particular no qual a solidão grudava-se como lava em cada pequeno canto, mais parecia um espaço da conciliação da dor com a paz. A solidão ali, tão espreita, dava tapinhas em nossas costas. Esfriava os nossos pés. Enchia o ar de silêncio. Mas a gente gostava de olhar pra ela assim: bem de frente. Ela era encarada nos olhos abertos e arqueados de minha avó. E nos meus olhos desconfiados. E a gente devolvia bofetões na cara da solidão. Porque ríamos dos causos felizes e dos tristes também. Porque o café meio velho e o pão meio duro da latinha era nosso banquete naqueles poucos momentos em que poderíamos nos alegrar pela simplicidade de nos termos ali, uma à outra, para não sermos nem ternas, nem rudes, nem belas, nem feias, nem sagazes e nem bobas.


Podíamos nos alegrar em ver a amargura cortante da vida em toda a sua crueza refletida uma nos olhos da outra, porque a gente não precisava fingir felicidade e nem chorar pelas coisas tristes. Precisávamos apenas deixar o tempo se arrastar o quanto fosse preciso para fazer o seu trabalho de ir lavando... De ir lavando, lavando e lavando aquelas nossas ideias tão infestadas da poeira dos sótãos do pensamento. Ela podia insistir para que eu não risse - pois que era verdade - que o cachorrinho preto que pegaram da rua pra criar havia morrido de calor. Morrido assim, de repente, com a língua pra fora, só por sentir muito calor. Morre-se de tudo nessa vida, por que não de calor, afinal?  Ela podia me explicar que não havia nem mesmo contradição em amar as galinhas do quintal mais do que todos os animais fofinhos juntos e, de vez em quando, fazer um cozido de frango caipira. Ela podia me mostrar a sua coleção de chifres de besouro como muito mais preciosa do que aquela sua caixinha de joias que ela nunca iria usar. E eu podia entender. E a gente podia ir assim, aos pouquinhos e do nosso jeitinho, fazendo as tardes decifrarem as contradições da vida.  Por isso, vira e mexe eu tenho saudade. Saudade do lado doce dessa rudeza nua da vida que se revelava tão possivelmente inteira a cada travessia daquele enferrujado portal. 

sábado, 29 de agosto de 2015

Hoje se foi minha avó

Hoje se foi minha avó. Não, não era a vovozinha típica dos filmes e desenhos. Ela era mais forte do que frágil. Minha vó sabia como ninguém lidar com as coisas duras da vida. Os longos dias no silêncio da sua casa, minuto após minuto, hora após hora, apenas com o som do relógio e dos passarinhos... Ela enfrentou com hombridade a guerra do silêncio dos seus 93 anos de vida. Guerra pela qual passa os idosos apegados às suas coisas e rotinas com altivez, mesmo que filhos e netos se façam presentes.

Minha avó criara 11 filhos lavando fralda de pano no tanque e cantando alto “para esquecer os longos dias em que ainda iria esperar para chegar seu homem de suas viagens de caminhão", que fazia na época. De vez em quando, também resolvia tocar sua gaita. E aprendeu a tocar brilhantemente. E eram 11 filhos e 11 mil choros e brigas, brigas das quais ela dizia não tomar partido de nenhum dos lados, “pois não era esse o dever de uma mãe”.

Ela sempre me surpreendia com presentinhos no meio da semana: bolo de laranja, goiabada, calendário de pano com desenho de corujinha, guardanapos bordados especialmente para mim com florzinhas coloridas feitas pelas suas próprias mãos enrugadas e certeiras. E ela discordava de mim dizendo que ela “não era tão boazinha quanto eu pensava. Na verdade, minha filha ninguém é assim, só bondade, isso é tudo uma ilusão”. Minha avó me ensinou com toda a sua pessoa muito do que eu sei da complexidade do ser humano. E a como ter honra diante da morte. Não só da morte física, mas das pequenas mortes ainda em vida. Lembro como se fosse hoje da gente numa fila de Banco para fazer sua anual prova de vida do idoso dizendo “é engraçado... chega uma idade que todo mundo espera tanto que você morra que é preciso ficar provando que está vivo e muito vivo”e fazia então questão de dizer de memória, para o funcionário do caixa que a atendia, todos os números dos seus dados de identidade, telefone, CEP, etc. Lembro-me também de quando me ligava dizendo que estava com saudades de mim e que “essa velha era custosa porque não queria morrer tão cedo”.

Minha avó lutou com todas as suas forças por cada segundo de sua vida. Resistiu a uma entubação e a uma amputação do pé  aos 93 anos mesmo depois de quase 15 dias solitária numa UTI na qual só podia receber 2 entes queridos durante meia hora por dia. E tudo isso num esforço surreal para manter a lucidez que tanto prezava, mas que agora só vinha em poucos momentos em meio a uma série de devaneios sobre passarinhos cantando e sobre teias de aranha que eram preciso “ser tiradas dos cantos do teto daquela casa velha”. A casa velha era o hospital. E quando ela se dava conta de onde estava, não podia se conformar com os tubos, fios e laços amarrando as suas mãos. “Espia só, como é que eu estou...”. E eu me lembrei de outros tempos de quando ela se curava de alguma enfermidade e me contava depois “só eu sei o que eu passei, minha filha. Ninguém sabe não, só eu  que sei”. É, vó...  Eu sempre soube que só você que sabia. Em Cem Anos de Solidão  Gabriel Garcia Marques já me ensinara essa lição: nossa dor é completamente solitária, mesmo que tantos saibam e participem dela. Nesse livro também tinha uma velhinha matriarca que nem a senhora, que foi ficando cega aos poucos e que ninguém percebeu quando ela chegara a ficar cega completamente, porque ela optara por viver aquela dor como de fato sempre é verdadeiramente: uma completa solidão. A cegueira que a senhora sofria cada vez maior, dia após dia, era uma dor que eu sabia que não podia aplacar. Bem como seu desespero para manter a lucidez. Bem como a dor de seus pés, que iam morrendo aos poucos e que lhe deixavam completamente desesperada por saber que neles poderia estar tudo o mais que lhe fizesse piorar. “Pode cortar do tanto que for preciso, é pra cortar pra eu viver” você disse, corajosa. E essa Vida bem pôde saber a cada momento, vó, da imensidão da sua garra e amor por ela. Guerreira das lutas dos tempos antigos, quando a mulher tinha muitíssimo pouco espaço nesse mundo, e também dos tempos do silêncio da vida idosa, quando as maiores batalhas não são apenas biológicas, mas de atribuição de sentido ao vazio quase que segundo após segundo, você lutou com honra.


E eu aprendi muito com você. Aprendi todos os dias ao atravessar aquele portal no caminho para sua casa que me transportava para a outra dimensão. Aprendi que cada detalhe é que faz o grande sentido. Tinha o café, o bordado, o biju, o padre cantor e o gatinho. Tinha os cachorrinhos que a senhora sempre arrumava não sei onde. E que preferia deixar de lhes batizar “porque todo cachorro que ganha nome acaba falecendo e nos deixando tristes”.  Tinha o cachorrinho que morreu mesmo sem lhe  dar um nome simplesmente “porque estava fazendo muito calor naqueles dias e ele colocou a língua pra fora pra morrer”. E tinha as galinhas, porque, puxa, nem era mesmo dos cachorrinhos que você gostava. Porque “bicho que se gosta mesmo, minha filha, é galinha. Das galinhas sim, eu gosto muito”. É vó... As galinhas deram muitos ovos dias atrás. E o portal que eu atravessava pra sua casa, e que com seus múltiplos sentidos simples tanto me ajudaram a sair de tanto absurdismo da vida, ainda será atravessado muitas vezes com o meu coração. 




terça-feira, 19 de maio de 2015

A pedra caiu

Abstrair-se do mundo. Tomar-se de um sentimento de flutuação. É mais ou menos assim: as pessoas debatem, a água enche o copo, o dia amanhece e anoitece, a música toca, o cachorro late, os alunos escrevem, o vento movimenta a planta, a moça canta no rádio, alguém dirige o carro... E tudo parece um grande baile liquefeito. É como se tudo pudesse ser visto em perspectiva temporal longínqua. E isso a todo momento. segundo após segundo. Dia após dia. Semana após semana. Simplesmente não se está ali. A concretude é presente. Mas essa concretude surge sempre monstruosamente permanente e monstruosamente passageira... Anos 20, anos 2000, tudo diferente, tudo tão igual. E, daqui a alguns anos, também. Tudo tão igual, mesmo tão diferente. E em outros lugares também.... Esse espaço tão grande parece sempre tão pequeno... Essa causa, essa finalidade, essa luta... Tão importante,tão necessária e, ao mesmo tempo, tão esgotável, tão melindre, tão rasa, tão nada...

"Peraí, onde é que está aquele tanto de coisa aqui dentro?" Eu procuro e não encontro. A princípio, parece um lapso. Depois, dia após dia, ele apenas se engrandece. E então permanece a cada segundo... Essa flutuação. Essa quebra. Esse despertencimento. Tristeza? Não. Alienação? Não. Desesperança? Também seria demais. Porque não há bipolaridade. Há contentamento e também não há. Há engajamento e também não há. Há limites e também não há. As bipolaridades são insuficientes aqui. De repente, simplesmente não se está mais lá. E nem em outro lugar também. E tudo funciona perfeitamente: você acorda, se veste, toma café, destranca a porta, fala coisas coerentes, escreve, concorda, discorda, fica, vai embora... Mas está do lado de fora. Pode ser? Pode não ser? Tudo pode e não pode, mesmo que possa e não possa. Tudo parece tão desnecessariamente sério. Tudo vai dar quase sempre no mesmo lugar. Esse quase é tão grande, pensa-se. Mas é também tão pequeno... Fica tudo assim. No lado de fora, mesmo estando de dentro. Esvaziamento sem querência de preenchimento. Preenchimento no total esvaziamento. Nenhuma lágrima cai e nenhum sorriso significa.

É verdade que quando tudo parece escapar pelos dedos, dedos que se desvanecem em meio às coisas como num quadro de Dalí, permanecem aparecendo algumas luzes: as luzes-pessoas. E então eu lembro-me de novo de quando ouvi Raquel de Queiroz na TV. “Você gosta da vida?” Perguntaram-lhe. E ela respondeu: “A vida? Não. Não gosto da vida. Eu gosto das pessoas! Ah, sim, das pessoas eu gosto!”. Ah... Eu também... Acho que é isso aí. As pessoas... Pessoas que nos permanecem, mesmo que não nos demore. É verdade... existem todas essas luzes. Nesse estádio de liqui(di)ficação flutuante, em que tudo escorre por dentro do absurdo, há luzes que invadem, atravessam e significam. Não, não tem nada a ver com paixão não. É claro que a pessoa-amor produz os lapsos mais intensos de não flutuação. Produz sobrevivência e além. Mas tem também as luzes da insignificância dos dias. Aquelas que, aqui e ali, invadem sem que se queira o espaço da abstração e fazem um total sentido numa troca, mesmo que breve.  É a pessoa simples, tipo a moça que te deu uma informação com simpatia ou o senhor que se dedicou tanto para escrever uma linha caprichada no papel. 

Imagens de arte bombardeiam a mente. "É isso, a arte. É isso, a arte. É a arte". A arte. Parece um canto de fada – ou ventos – nos ouvidos. Lembranças então da infância: "tintas são tão lindas, elas se misturam, elas viram outra cor, a gente pode fazer as cores que quiser e pode fazer figuras e tudo pode ser sempre assim, tintas e mais tintas". Mas, puxa, tem a filosofia. "Ah, a filosofia, essa minha amiga amarga. A gente se estapeia em meio a momentos corriqueiros do cotidiano. A gente se ama e se ri uma da outra. A filosofia, amada minha... Ela é a culpada! Ela me trouxe até aqui, não quero ela não, a filosofia não... Mas, como, como sem filosofia?". Correntes que me prendem para me lançar aos voos, te quero como não te quero.

As pessoas... Sim, as pessoas são os pontos de luz que nos sobrevivem na quebra. "Mas essa quebra é minha demais. E vai até o magma da Terra. Esse mesmo magma que quebra paredes e lança cinzas nas cidades. Essa quebra é muito minha. E é líquida. Desse mesmo líquido que corre os espaços e se comunicam com o universo". A quebra não tem cheiro, nem cor, nem som, nem palavra, nem nada. E nem é um nada também... "Ah., já sei! É o absurdo de Camus", disse-me aquela amiga poeta. “Leia o Mito de Sísifo”. “Ah... é?”


Sísifo rola a pedra para cima do topo, a pedra rola montanha abaixo e ele a rola para cima de novo. Numa maldição interminável. E a rola e irá rolar sempre, por toda a eternidade.

Perceber a eternidade do rolar. Perceber que a pedra caiu. E que ela vai cair de novo. Ir lá e busca-la. E leva-la ao topo de novo. E ela cair de novo. E de novo... "Maldição, essa amiga filosofia!" – "Mas... Nela a felicidade é sublime, li uma vez em Mill". "E é isso mesmo, disse-me outra vez uma outra amiga". "Não sei. Não sei. Não sei". Consciente da eternidade desse rolar sem fim, essa pedra se torna tão pesada que se chega a flutuar. Pois... Essa eternidade das pedras sempre a cair... Acho que essa não é  só muito minha, mas de toda a humanidade.

Então..."Rebelar-se como, Camus?". A pedra, Camus... A pedra é o sentido.




sábado, 10 de maio de 2014

Lian, obrigada por cuidar bem de você!



Lian, hoje é seu aniversário e estou aqui pensando em que buraco você se escondeu dessa vez. Em que pedra subiu ou em que árvore se dependurou. A única certeza que eu tenho é que você foi celebrar o seu dia do modo mais precioso para se alimentar o espírito. E fico tão imensamente feliz de pensar que você está tomando conta de você, tomando conta do jeito que se deve, de um modo inteiro, de corpo e alma, da maneira que tem direito e com todo o cuidado necessário.

Houve um tempo em que achei que eu podia cuidar de você, te proteger de qualquer coisa que viesse lhe fazer mal. Porque muito cedo eu percebi que aquela menina de traços tão resolutos era, na verdade, o ser humano mais sensível que eu já havia conhecido. Eu achava que só eu percebia isso. E algo me fazia crer que só eu poderia sempre te defender de todo o mal.  Taí um capítulo digno que faltou em nosso gibi. Então, vamos lá, eu dizia, não precisa se preocupar, eu sei ser forte e vou cuidar disso pra você não chorar. Ou então, desatava a te dar broncas: esse caminho não... Não vai por aí, não vai por aí... Mas, de repente, quando eu me dava conta, era eu quem estava chorando embasbacada e você é quem estava ali me defendendo e sendo forte sem derramar uma lágrima. De repente, o mundo dava uma de suas primeiras cacetadas contra nós – e nem imaginávamos o que ainda viria pela frente – e era você quem estava cuidando de mim.   De repente, só você conseguia me proteger. E aquela fragilidade foi se revelando pra mim na sua maior capacidade de reverso. E eu percebia cada vez mais desconfiada e mais intrigada que a mais imensa sensibilidade e os mais malucos riscos podem ser as formas mais eficazes de se proteger do mundo. E eu gostei tanto! Gostei tanto disso! Você se mudou para o Rio e, sim, você sabia se proteger, sobreviver e viver! E, mais do que isso, você, simplesmente você, assim do jeitinho que você é, era uma escola para o mundo inteiro.

Com você o óbvio cada vez mais se desfaz de um jeito mais bonito, criativo e amoroso. E o mundo, que de repente se revelou muito mais difícil do que eu imaginava, também se mostrou possível de ser muito mais prenhe de humanismo, de sonho e de beleza do que antes... E tudo isso na medida em que você, tão pequenina, foi se abrindo mais para ele- tão imenso, controverso e assustador. Nesse processo, você se tornou mais do que uma amiga, se tornou uma espécie de porto seguro da minha esperança: se existe uma alma tão linda como a da Lian, tudo, tudo pode ser diferente. Tudo pode ser diferente não simplesmente por poder ser mais amor (por favor!), mas por poder ser mais amor na liberdade de todos os mesquinhos preconceitos, no desejo real de (re)conhecimento de humanismo nos “estranhos” para além de diferenças de cultura ou de posses materiais, no retorno à infância de maneira genuinamente entregue ao riso solto e ao mundo da fantasia, na possibilidade de uma elaboração desinteressada de arte, na conversa de silêncio sem pressa com a natureza. Com você o mais amor é muito, muito mais humano: é revirada e quebra de todas as receitas de sobrevivência e vivência sempre que essa quebra seja mais beleza e encantamento.

Então, seja lá onde estiver, obrigada por cuidar bem de você. Obrigada por cuidar bem de você cuidando bem do mundo, coisa tão difícil hoje. Obrigada por escolher criteriosamente seus alimentos, por subir tão alto e por arriscar tanto sua subjetividade. Obrigada por se dar o direito fugir de tudo para um encontro verdadeiro contigo mesma sempre que julgar isso necessário. Eu sei bem que o mundo precisa muito, muito de você e que, especialmente hoje, o universo inteiro agradece todo esse cuidado. Mas eu agradeço ainda mais, porque na teia dos caminhos do meu universo particular, você é um dos sentidos realmente essenciais de uma mais completa (des)ordem!

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Tatiana: o amor majestoso


Ela nasceu, digamos assim, como uma revolução. Porque embora tenha sido planejada, gestou-se de um caos para formar-se em maravilha. Mas é revolucionária que nasce a Natureza em sua completude: toda razão e lógica explode em fantásticas reviravoltas de emoção. Só assim transfigura-se deslumbrante em cores, formas e sentimentos indescritivelmente belos. É nesse todo de reviravoltas que ela é profunda e abraça o universo como a mais caridosa mãe. Tentar entendê-la capturando um momento ou uma parte é perder sua grandeza, ou seja, é perder sua essência: a capacidade de se refazer refazendo a todos para si e em si. Natureza que é, ela é majestosa. Cheia de segredos. Centelha que chora em rios, mas renasce em sol. Tormenta que se revira, mas retorna-se em raiz maternal que protege todos os galhos e folhas das tempestades. Como revolução que nasceu,  revolução é.

A frondosa Natureza é ela toda uma mulher.Tatiana fez-se da relação de amor entre a mata amazônica e guerrilheiros por um mundo mais justo e bonito. Como fruto-Natureza, fez filha ao mesmo tempo em que fez-se mãe do mundo inteiro, herdando assim a revolução de sua raiz: ser ao mesmo tempo o princípio e o futuro, a semente e a sombra, água e luz que alimenta. Ainda bebê ela fora a nutrição para os seus pais em amor e reconhecimento de humanidade. Ainda adolescente ela fora a segunda mãe de suas irmãs cuidando da segurança, carinho e educação. 

A sua essência de um todo-mãe reviravolto é a própria Natureza: não se sabe com razão, mas se faz por emoção. É por tormentas que ela segue seu fluxo de querer cuidar dos frágeis seres humanos como se fossem seus próprios filhos. É por tormentas que ela segue seu fluxo de não conseguir deixar de sentir na pele o que o outro sente. Afinal, a frondosa Natureza também quer ser filha e é nesse todo que está sua alegria e dor. E ela faz maravilhas ainda que passando pelas angústias do parto. Majestosa e misteriosa como natureza-mata-amazônica também é toda sol, linda, radiante e estonteante após as tempestades. Não poderia deixar de ser esse misto porque é grande como a própria Natureza, traz a dialética do rio revolto que tudo arrasta e do caos que pare uma estrela dançarina. E de um doce cativante a qualquer um que permite-se conhecê-la e simplesmente deixar-se ser por ela. Casa-se Plínio, faz João e Nina, e ainda permanece um oceano de tesouros raros.

Ela retraduz com a altivez a grande mãe e o grande pai - guerrilheira por humanidades. Ela retraduz com feminilidade a grande Natureza: não se trata de entender razões e sim de gerar amor para além de qualquer lógica. E é esse amor que abraça. Amor que cura. Amor que une. Amor que nos sustenta sem saber-se esteio. Sem saber-se grande como é. Tal como a própria grande natureza não se sabe, Tatiana também nem imagina tamanho ar, água e nutrição é de tantos. Quem dirá o meu... Hoje, no dia do seu aniversário, insuficientes são as palavras para dizer-lhe: te amo, te amo, te amo.