terça-feira, 19 de maio de 2015

A pedra caiu

Abstrair-se do mundo. Tomar-se de um sentimento de flutuação. É mais ou menos assim: as pessoas debatem, a água enche o copo, o dia amanhece e anoitece, a música toca, o cachorro late, os alunos escrevem, o vento movimenta a planta, a moça canta no rádio, alguém dirige o carro... E tudo parece um grande baile liquefeito. É como se tudo pudesse ser visto em perspectiva temporal longínqua. E isso a todo momento. segundo após segundo. Dia após dia. Semana após semana. Simplesmente não se está ali. A concretude é presente. Mas essa concretude surge sempre monstruosamente permanente e monstruosamente passageira... Anos 20, anos 2000, tudo diferente, tudo tão igual. E, daqui a alguns anos, também. Tudo tão igual, mesmo tão diferente. E em outros lugares também.... Esse espaço tão grande parece sempre tão pequeno... Essa causa, essa finalidade, essa luta... Tão importante,tão necessária e, ao mesmo tempo, tão esgotável, tão melindre, tão rasa, tão nada...

"Peraí, onde é que está aquele tanto de coisa aqui dentro?" Eu procuro e não encontro. A princípio, parece um lapso. Depois, dia após dia, ele apenas se engrandece. E então permanece a cada segundo... Essa flutuação. Essa quebra. Esse despertencimento. Tristeza? Não. Alienação? Não. Desesperança? Também seria demais. Porque não há bipolaridade. Há contentamento e também não há. Há engajamento e também não há. Há limites e também não há. As bipolaridades são insuficientes aqui. De repente, simplesmente não se está mais lá. E nem em outro lugar também. E tudo funciona perfeitamente: você acorda, se veste, toma café, destranca a porta, fala coisas coerentes, escreve, concorda, discorda, fica, vai embora... Mas está do lado de fora. Pode ser? Pode não ser? Tudo pode e não pode, mesmo que possa e não possa. Tudo parece tão desnecessariamente sério. Tudo vai dar quase sempre no mesmo lugar. Esse quase é tão grande, pensa-se. Mas é também tão pequeno... Fica tudo assim. No lado de fora, mesmo estando de dentro. Esvaziamento sem querência de preenchimento. Preenchimento no total esvaziamento. Nenhuma lágrima cai e nenhum sorriso significa.

É verdade que quando tudo parece escapar pelos dedos, dedos que se desvanecem em meio às coisas como num quadro de Dalí, permanecem aparecendo algumas luzes: as luzes-pessoas. E então eu lembro-me de novo de quando ouvi Raquel de Queiroz na TV. “Você gosta da vida?” Perguntaram-lhe. E ela respondeu: “A vida? Não. Não gosto da vida. Eu gosto das pessoas! Ah, sim, das pessoas eu gosto!”. Ah... Eu também... Acho que é isso aí. As pessoas... Pessoas que nos permanecem, mesmo que não nos demore. É verdade... existem todas essas luzes. Nesse estádio de liqui(di)ficação flutuante, em que tudo escorre por dentro do absurdo, há luzes que invadem, atravessam e significam. Não, não tem nada a ver com paixão não. É claro que a pessoa-amor produz os lapsos mais intensos de não flutuação. Produz sobrevivência e além. Mas tem também as luzes da insignificância dos dias. Aquelas que, aqui e ali, invadem sem que se queira o espaço da abstração e fazem um total sentido numa troca, mesmo que breve.  É a pessoa simples, tipo a moça que te deu uma informação com simpatia ou o senhor que se dedicou tanto para escrever uma linha caprichada no papel. 

Imagens de arte bombardeiam a mente. "É isso, a arte. É isso, a arte. É a arte". A arte. Parece um canto de fada – ou ventos – nos ouvidos. Lembranças então da infância: "tintas são tão lindas, elas se misturam, elas viram outra cor, a gente pode fazer as cores que quiser e pode fazer figuras e tudo pode ser sempre assim, tintas e mais tintas". Mas, puxa, tem a filosofia. "Ah, a filosofia, essa minha amiga amarga. A gente se estapeia em meio a momentos corriqueiros do cotidiano. A gente se ama e se ri uma da outra. A filosofia, amada minha... Ela é a culpada! Ela me trouxe até aqui, não quero ela não, a filosofia não... Mas, como, como sem filosofia?". Correntes que me prendem para me lançar aos voos, te quero como não te quero.

As pessoas... Sim, as pessoas são os pontos de luz que nos sobrevivem na quebra. "Mas essa quebra é minha demais. E vai até o magma da Terra. Esse mesmo magma que quebra paredes e lança cinzas nas cidades. Essa quebra é muito minha. E é líquida. Desse mesmo líquido que corre os espaços e se comunicam com o universo". A quebra não tem cheiro, nem cor, nem som, nem palavra, nem nada. E nem é um nada também... "Ah., já sei! É o absurdo de Camus", disse-me aquela amiga poeta. “Leia o Mito de Sísifo”. “Ah... é?”


Sísifo rola a pedra para cima do topo, a pedra rola montanha abaixo e ele a rola para cima de novo. Numa maldição interminável. E a rola e irá rolar sempre, por toda a eternidade.

Perceber a eternidade do rolar. Perceber que a pedra caiu. E que ela vai cair de novo. Ir lá e busca-la. E leva-la ao topo de novo. E ela cair de novo. E de novo... "Maldição, essa amiga filosofia!" – "Mas... Nela a felicidade é sublime, li uma vez em Mill". "E é isso mesmo, disse-me outra vez uma outra amiga". "Não sei. Não sei. Não sei". Consciente da eternidade desse rolar sem fim, essa pedra se torna tão pesada que se chega a flutuar. Pois... Essa eternidade das pedras sempre a cair... Acho que essa não é  só muito minha, mas de toda a humanidade.

Então..."Rebelar-se como, Camus?". A pedra, Camus... A pedra é o sentido.




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