sábado, 29 de agosto de 2015

Hoje se foi minha avó

Hoje se foi minha avó. Não, não era a vovozinha típica dos filmes e desenhos. Ela era mais forte do que frágil. Minha vó sabia como ninguém lidar com as coisas duras da vida. Os longos dias no silêncio da sua casa, minuto após minuto, hora após hora, apenas com o som do relógio e dos passarinhos... Ela enfrentou com hombridade a guerra do silêncio dos seus 93 anos de vida. Guerra pela qual passa os idosos apegados às suas coisas e rotinas com altivez, mesmo que filhos e netos se façam presentes.

Minha avó criara 11 filhos lavando fralda de pano no tanque e cantando alto “para esquecer os longos dias em que ainda iria esperar para chegar seu homem de suas viagens de caminhão", que fazia na época. De vez em quando, também resolvia tocar sua gaita. E aprendeu a tocar brilhantemente. E eram 11 filhos e 11 mil choros e brigas, brigas das quais ela dizia não tomar partido de nenhum dos lados, “pois não era esse o dever de uma mãe”.

Ela sempre me surpreendia com presentinhos no meio da semana: bolo de laranja, goiabada, calendário de pano com desenho de corujinha, guardanapos bordados especialmente para mim com florzinhas coloridas feitas pelas suas próprias mãos enrugadas e certeiras. E ela discordava de mim dizendo que ela “não era tão boazinha quanto eu pensava. Na verdade, minha filha ninguém é assim, só bondade, isso é tudo uma ilusão”. Minha avó me ensinou com toda a sua pessoa muito do que eu sei da complexidade do ser humano. E a como ter honra diante da morte. Não só da morte física, mas das pequenas mortes ainda em vida. Lembro como se fosse hoje da gente numa fila de Banco para fazer sua anual prova de vida do idoso dizendo “é engraçado... chega uma idade que todo mundo espera tanto que você morra que é preciso ficar provando que está vivo e muito vivo”e fazia então questão de dizer de memória, para o funcionário do caixa que a atendia, todos os números dos seus dados de identidade, telefone, CEP, etc. Lembro-me também de quando me ligava dizendo que estava com saudades de mim e que “essa velha era custosa porque não queria morrer tão cedo”.

Minha avó lutou com todas as suas forças por cada segundo de sua vida. Resistiu a uma entubação e a uma amputação do pé  aos 93 anos mesmo depois de quase 15 dias solitária numa UTI na qual só podia receber 2 entes queridos durante meia hora por dia. E tudo isso num esforço surreal para manter a lucidez que tanto prezava, mas que agora só vinha em poucos momentos em meio a uma série de devaneios sobre passarinhos cantando e sobre teias de aranha que eram preciso “ser tiradas dos cantos do teto daquela casa velha”. A casa velha era o hospital. E quando ela se dava conta de onde estava, não podia se conformar com os tubos, fios e laços amarrando as suas mãos. “Espia só, como é que eu estou...”. E eu me lembrei de outros tempos de quando ela se curava de alguma enfermidade e me contava depois “só eu sei o que eu passei, minha filha. Ninguém sabe não, só eu  que sei”. É, vó...  Eu sempre soube que só você que sabia. Em Cem Anos de Solidão  Gabriel Garcia Marques já me ensinara essa lição: nossa dor é completamente solitária, mesmo que tantos saibam e participem dela. Nesse livro também tinha uma velhinha matriarca que nem a senhora, que foi ficando cega aos poucos e que ninguém percebeu quando ela chegara a ficar cega completamente, porque ela optara por viver aquela dor como de fato sempre é verdadeiramente: uma completa solidão. A cegueira que a senhora sofria cada vez maior, dia após dia, era uma dor que eu sabia que não podia aplacar. Bem como seu desespero para manter a lucidez. Bem como a dor de seus pés, que iam morrendo aos poucos e que lhe deixavam completamente desesperada por saber que neles poderia estar tudo o mais que lhe fizesse piorar. “Pode cortar do tanto que for preciso, é pra cortar pra eu viver” você disse, corajosa. E essa Vida bem pôde saber a cada momento, vó, da imensidão da sua garra e amor por ela. Guerreira das lutas dos tempos antigos, quando a mulher tinha muitíssimo pouco espaço nesse mundo, e também dos tempos do silêncio da vida idosa, quando as maiores batalhas não são apenas biológicas, mas de atribuição de sentido ao vazio quase que segundo após segundo, você lutou com honra.


E eu aprendi muito com você. Aprendi todos os dias ao atravessar aquele portal no caminho para sua casa que me transportava para a outra dimensão. Aprendi que cada detalhe é que faz o grande sentido. Tinha o café, o bordado, o biju, o padre cantor e o gatinho. Tinha os cachorrinhos que a senhora sempre arrumava não sei onde. E que preferia deixar de lhes batizar “porque todo cachorro que ganha nome acaba falecendo e nos deixando tristes”.  Tinha o cachorrinho que morreu mesmo sem lhe  dar um nome simplesmente “porque estava fazendo muito calor naqueles dias e ele colocou a língua pra fora pra morrer”. E tinha as galinhas, porque, puxa, nem era mesmo dos cachorrinhos que você gostava. Porque “bicho que se gosta mesmo, minha filha, é galinha. Das galinhas sim, eu gosto muito”. É vó... As galinhas deram muitos ovos dias atrás. E o portal que eu atravessava pra sua casa, e que com seus múltiplos sentidos simples tanto me ajudaram a sair de tanto absurdismo da vida, ainda será atravessado muitas vezes com o meu coração. 




terça-feira, 19 de maio de 2015

A pedra caiu

Abstrair-se do mundo. Tomar-se de um sentimento de flutuação. É mais ou menos assim: as pessoas debatem, a água enche o copo, o dia amanhece e anoitece, a música toca, o cachorro late, os alunos escrevem, o vento movimenta a planta, a moça canta no rádio, alguém dirige o carro... E tudo parece um grande baile liquefeito. É como se tudo pudesse ser visto em perspectiva temporal longínqua. E isso a todo momento. segundo após segundo. Dia após dia. Semana após semana. Simplesmente não se está ali. A concretude é presente. Mas essa concretude surge sempre monstruosamente permanente e monstruosamente passageira... Anos 20, anos 2000, tudo diferente, tudo tão igual. E, daqui a alguns anos, também. Tudo tão igual, mesmo tão diferente. E em outros lugares também.... Esse espaço tão grande parece sempre tão pequeno... Essa causa, essa finalidade, essa luta... Tão importante,tão necessária e, ao mesmo tempo, tão esgotável, tão melindre, tão rasa, tão nada...

"Peraí, onde é que está aquele tanto de coisa aqui dentro?" Eu procuro e não encontro. A princípio, parece um lapso. Depois, dia após dia, ele apenas se engrandece. E então permanece a cada segundo... Essa flutuação. Essa quebra. Esse despertencimento. Tristeza? Não. Alienação? Não. Desesperança? Também seria demais. Porque não há bipolaridade. Há contentamento e também não há. Há engajamento e também não há. Há limites e também não há. As bipolaridades são insuficientes aqui. De repente, simplesmente não se está mais lá. E nem em outro lugar também. E tudo funciona perfeitamente: você acorda, se veste, toma café, destranca a porta, fala coisas coerentes, escreve, concorda, discorda, fica, vai embora... Mas está do lado de fora. Pode ser? Pode não ser? Tudo pode e não pode, mesmo que possa e não possa. Tudo parece tão desnecessariamente sério. Tudo vai dar quase sempre no mesmo lugar. Esse quase é tão grande, pensa-se. Mas é também tão pequeno... Fica tudo assim. No lado de fora, mesmo estando de dentro. Esvaziamento sem querência de preenchimento. Preenchimento no total esvaziamento. Nenhuma lágrima cai e nenhum sorriso significa.

É verdade que quando tudo parece escapar pelos dedos, dedos que se desvanecem em meio às coisas como num quadro de Dalí, permanecem aparecendo algumas luzes: as luzes-pessoas. E então eu lembro-me de novo de quando ouvi Raquel de Queiroz na TV. “Você gosta da vida?” Perguntaram-lhe. E ela respondeu: “A vida? Não. Não gosto da vida. Eu gosto das pessoas! Ah, sim, das pessoas eu gosto!”. Ah... Eu também... Acho que é isso aí. As pessoas... Pessoas que nos permanecem, mesmo que não nos demore. É verdade... existem todas essas luzes. Nesse estádio de liqui(di)ficação flutuante, em que tudo escorre por dentro do absurdo, há luzes que invadem, atravessam e significam. Não, não tem nada a ver com paixão não. É claro que a pessoa-amor produz os lapsos mais intensos de não flutuação. Produz sobrevivência e além. Mas tem também as luzes da insignificância dos dias. Aquelas que, aqui e ali, invadem sem que se queira o espaço da abstração e fazem um total sentido numa troca, mesmo que breve.  É a pessoa simples, tipo a moça que te deu uma informação com simpatia ou o senhor que se dedicou tanto para escrever uma linha caprichada no papel. 

Imagens de arte bombardeiam a mente. "É isso, a arte. É isso, a arte. É a arte". A arte. Parece um canto de fada – ou ventos – nos ouvidos. Lembranças então da infância: "tintas são tão lindas, elas se misturam, elas viram outra cor, a gente pode fazer as cores que quiser e pode fazer figuras e tudo pode ser sempre assim, tintas e mais tintas". Mas, puxa, tem a filosofia. "Ah, a filosofia, essa minha amiga amarga. A gente se estapeia em meio a momentos corriqueiros do cotidiano. A gente se ama e se ri uma da outra. A filosofia, amada minha... Ela é a culpada! Ela me trouxe até aqui, não quero ela não, a filosofia não... Mas, como, como sem filosofia?". Correntes que me prendem para me lançar aos voos, te quero como não te quero.

As pessoas... Sim, as pessoas são os pontos de luz que nos sobrevivem na quebra. "Mas essa quebra é minha demais. E vai até o magma da Terra. Esse mesmo magma que quebra paredes e lança cinzas nas cidades. Essa quebra é muito minha. E é líquida. Desse mesmo líquido que corre os espaços e se comunicam com o universo". A quebra não tem cheiro, nem cor, nem som, nem palavra, nem nada. E nem é um nada também... "Ah., já sei! É o absurdo de Camus", disse-me aquela amiga poeta. “Leia o Mito de Sísifo”. “Ah... é?”


Sísifo rola a pedra para cima do topo, a pedra rola montanha abaixo e ele a rola para cima de novo. Numa maldição interminável. E a rola e irá rolar sempre, por toda a eternidade.

Perceber a eternidade do rolar. Perceber que a pedra caiu. E que ela vai cair de novo. Ir lá e busca-la. E leva-la ao topo de novo. E ela cair de novo. E de novo... "Maldição, essa amiga filosofia!" – "Mas... Nela a felicidade é sublime, li uma vez em Mill". "E é isso mesmo, disse-me outra vez uma outra amiga". "Não sei. Não sei. Não sei". Consciente da eternidade desse rolar sem fim, essa pedra se torna tão pesada que se chega a flutuar. Pois... Essa eternidade das pedras sempre a cair... Acho que essa não é  só muito minha, mas de toda a humanidade.

Então..."Rebelar-se como, Camus?". A pedra, Camus... A pedra é o sentido.