"Eu quero é que esse canto torto,
feito faca, corte a carne de vocês"
feito faca, corte a carne de vocês"
Belchior repete isso: amar e mudar as coisas me interessa
mais, eu não estou interessado em nenhuma teoria. A verdade sempre está firme com quem preenche todos os vazios. A teoria
tradicionalmente sai da concretude: ela é essa transcendência de uma eterna
possibilidade do divino maravilhoso. Esse divino maravilhoso que condena todo
vazio, todo negativo, toda falta como um mero presente cruel e passageiro. A
insistência no preenchimento condena eternamente todos os homens do presente. E
é sempre uma condenação do outro: os outros são cruéis, negativos e cheios de
faltas, mas o ser humano divino e maravilhoso sabe o caminho para tudo ser
divino maravilhoso. O eu dotado da transcendência que condena a todos é no
fundo um otimista e, porque não dizer, eterno positivista: ainda que sua teoria
se coloque como reverso, ela cai no encerramento, no preenchimento do vazio
como progresso. O meu outro Marx, o da dialética, mantém esse negativo: o vazio
é para ele concreto, o que não nos impede de mudar as coisas. Eu disse ao Freud
lacaniano: o insuportável do vazio é que ele é concreto, ele não é teoria. O
vazio é real, posso pegar nele, posso senti-lo todos os dias no cotidiano da
vida bruta e sem delírios e é por isso que o vazio é dilacerante, e é por isso
que tendemos a cair no divino maravilhoso que sempre condena o outro e que dá
ao vazio uma negação sempre absoluta, fantasiosa.
“Mas sei que nada é divino, nada, nada é maravilhoso, nada, nada
é secreto, nada, nada é misterioso, não”, diz a canção de Belchior. Não existe
maravilha, nem segredo e nem mistério: a vida é o que é, não há vazio a ser
preenchido, não há um mistério a ser revelado que reverta o negativo. A vida é
o dia a dia concreto é o “um preto, um pobre, um estudante, uma mulher sozinha,
blue jeans e motocicletas, pessoas
cinzas normais. Garotas dentro da noite, revólver: cheira cachorro, os humilhados do parque com os seus jornais.
Carneiros, mesa, trabalho, meu corpo
que cai do oitavo andar, e a solidão das
pessoas dessas capitais. A violência da noite, o movimento do tráfego... Cravos, espinhas no rosto”. É esse o concreto do vazio, do negativo: humilhados
no parque, trabalho, solidão, as pessoas cinzas e normais com seus cravos e
espinhas no rosto. Nada é secreto nem misterioso. Por isso, “Eu não estou
interessado em nenhuma teoria em nenhuma fantasia, nem no algo mais, nem em
tinta pro meu rosto ou oba oba, ou melodia, pra acompanhar bocejos, sonhos
matinais, nem nessas coisas do oriente, romances astrais. A minha alucinação é
suportar o dia-a-dia e meu delírio é a experiência com coisas reais.” Não há
nada de divino ou maravilhoso, as teorias são fantasia que buscam esse algo
mais, são sonhos matinais daqueles que ainda não acordaram para a presença
irrevogável da dureza das coisas reais.
Belchior nos canta essa
concretude que diz: o vazio não vai ser preenchido, a salvação do negativo não
virá, ele é parte do real. Mas insiste:“Eu sou apenas um rapaz latino americano, sem dinheiro no banco. Por
favor não saque a arma no saloon, eu sou apenas um cantor.” E ele é
apenas um cantor que diz a vida, a vida é que está repleta do negativo: “Não me
peça que eu lhe faça uma canção como se deve: correta, branca, suave,
muito limpa, muito leve. Sons, palavras, são navalhas e eu não posso
cantar como convém, sem querer ferir ninguém”. Não
convém falar sem ferir ninguém: todas as palavras sempre podem machucar, são
como navalhas. As palavras de Belchior não tem escolha, a vida em si é
cortante e dilacerante: “não se
preocupe, meu amigo com os horrores que eu lhe digo. Isso é somente uma canção.
A vida realmente é diferente, quer dizer, a vida é muito pior”.
Esse Belchior que me fala dessa vida pior, me felicita com
comunhão. Eu também não estou mais interessada em nada que resolva, estou mais
ligada ao delírio como experiência das coisas reais, das pessoas cinzas normais. E isso nada tem
a ver com abandonar os humilhados nos parques com os seus jornais e sim em abandonar a fantasia do preenchimento para a abraçar as mudanças possíveis e
engendradas nessa dureza do concreto. “Tudo muda e com toda razão”: a vida concreta
está sempre em movimento e, mesmo que nunca se preencha, sempre se transforma. Abandonar
as fantasias, as teorias que sempre condenam o presente não é profetizar o
terror: “longe o profeta do terror que a laranja mecânica anuncia, amar e mudar as coisas me
interessa mais”. É simplesmente isso: amar e mudar as coisas, amar e mudar as
coisas, sem a fantasia, sem o oba oba de um grande algo mais.
Amar e mudar as coisas é a imagem de dois policiais “cumprindo
o seu (maldito)duro dever e defendendo o seu amor e nossa vida”. Desde uma
postura no nosso dia a dia individual, cumprir a dura rotina sem abrir mão do
amor e da liberdade é defender a vida, a vida simplesmente, com toda a sua presença e falta. Não se trata
de resolver, amar e mudar as coisas é tudo o que nos resta e tudo que também me
interessa.
Longe das profecias extremistas, não estamos nem no bem, nem
no mal. É tudo proibido ao mesmo tempo em que é tudo permitido: “até beijar
você no escuro do cinema quando ninguém nos vê”.
Podemos até sacar a arma e atirar em Belchior pela sua aspereza de detonar
nossas ilusões. Mas o vazio não é universal, lembra? Sem a repleta maravilha ou
a repleta falta, podemos matar as fantasias e podemos matar Belchior ao mesmo
tempo em que comparecemos em ambos (negativo e positivo) o tempo todo: Belchior
também se compromete a nos oferecer algo de bom mais tarde:
"Mas se depois de cantar você ainda quiser me atirar, mate-me logo à tarde, às três que à noite eu tenho
compromisso E não posso faltar por causa de você”.
Engraçado. Eu estava conversando sobre algo muito parecido com uma amiga ontem. A vida não deve ser nem de lamentação, nem da leveza insustentável dita por Milan Kundera. Se prostrar frente a esse vazio e se render às dificuldades é desperdiçar a vida. Da mesma forma, ignorar os problemas e negligenciar a grande responsabilidade que é viver é um ato temerário. Ambos são insustentáveis. Precisamos viver, e isso é "cumprir a dura rotina sem abrir mão do amor e da liberdade", é " amar e mudar as coisas". Não sei foi exatamente isso que você quis passar, mas me levou a refletir.
ResponderExcluirÉ isso, Paulo Victor. E Drummond se encontra com Belchior: Não serei o poeta de um mundo caduco. Também não cantarei o mundo futuro (...) O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,a vida presente.". E vamos de mãos dadas!
ResponderExcluirComo o próprio Kundera afirma " a leveza do ser" é "insustentável". Somos,quase sempre, pesados. Sobrevivemos de "rolar pedra acima" tal qual Sísifos desconsolados, que, no entanto, não encontram outra ocupação ou saída. Ser leve talvez signifique inexistir. Já que não somos divinos e imortais, seguimos com nossas lástimas, dores, alegrias, risos, afetos e desafetos ... De maneira desordenada, anacrônica e sem sentidos ou significados exatamente calculados.
ResponderExcluirSomos gente.A Júlia arrasou nesse texto!!!
E mesmo à distância me sinto dialogando com você ao ler este texto. Seus pensamentos sempre me instigam a pensar também. Que falta você faz no meu doutorado!!
ResponderExcluirBelchior é quem canta com leveza a aspereza dos homens.
ResponderExcluirBelo texto!
\o/