domingo, 13 de dezembro de 2009

Liberdade e contravenção


Trago em mim desde muito cedo um sentimento que não sei nomear e que não sei dizer quando foi que começou a me atormentar. Nunca fui uma criança travessa, dessas de subir nos galhos mais altos das árvores ou correr desgoverna-damente arriscando ralar o joelho em cima da ferida antiga. Nem de fugir da aula para ir à feira agropecuária da cidade ou experimentar cigarro escondido. Mas dentro da minha retidão de comportamento, da boa e "educada" menina, nunca faltou energia e intensidade para a contravenção.

O que ocorreu por um bom tempo foi um atraso ou confusão em saber direcionar essa intensidade que vive querendo explodir de alguma forma reconhecidamente fora das "regras". Talvez o tormento tenha surgido mais tarde porque nunca tive uma educação muito conveniente com o padrão geral. Meu pai matou o Papai Noel antes mesmo que eu conhecesse de fato a fábula de natal. Minha mãe não fazia a mínima questão de me cobrar frequência na escola e boas notas. Eles estavam muito preocupados e ocupados em construir estratégias que pudessem acelerar a derrocada do perverso sistema capitalista. E disto sim faziam questão: demonstrar para nós, as filhas, tal perversidade do capitalismo e a necessidade de se posicionar e lutar por seu fracasso inevitável. Por um bom tempo a minha satisfação em nadar contra a corrente ou "matar" meus pais foi seguir a cartilha da disciplina de uma aluna exemplar e ter uma religião rígida.


Embora tenham existido orientações firmes, meus pais me deramliberdade de ação, decisão e posição   desde a infância. Por isso veio tão cedo a noção de responsabilidade. Não só por não saber o que fazer com o presente que ganhei já na maternidade quanto por não saber como romper com o cordão umbilical. Mas houve algum momento em que a opção por uma vida certinha e convencional deixou de ser a melhor que eu pudesse fazer com essa liberdade. Houve um momento em que seguir o caminho planejado nos moldes de um "futuro promissor", planejado cuidadosamente dentro das receitas padrões, passou a significar para mim um enorme risco de não viver - de verdade -  e de não conhecer todas as complexidades humanas. E de não contribuir com o que talvez eu tenha de melhor. Talvez porque eu tenha me dado conta de fato sobre o que acredito: que não se vive duas vezes. Ou talvez porque eu tenha entendido a diferença positiva entre convenção e contravenção social .Ou  ainda talvez entendido por que é que o homem de barbas brancas que meus pais fizeram questão de fazer com que eu acreditarsse tenha sido Marx e não Papai Noel. Só sei que, agora, optar pelo cotidiano socialmente comum e de valores mesquinhos passou a ser um risco enorme.

Risco de simplificar os signos e significados sem combinações exatas,  descartar um mundo cheio de possibilidades, cores, sons e desejos por um espelho artificial, encaixar o cotidiano em uma fôrma que não é a mais bonita e, muito menos, a mais promissora e segura. Risco de ratificar a harmonização forçada de uma realidade cheia de hipocrisias e recalques.

A escolha pela disciplina quando da minha posse prematura da liberdade se deu por pura rebeldia. Mas me levou a uma descoberta importante: a de que ser livre não é viver em  um mundo sem regras. Ser livre é viver e permitir viver com intensidade tudo aquilo que nos faz mais humanos , que nos realiza profundamente em nossa individualidade e coletividade.

Houve um momento em que descobri que optar por ter disciplina e responsabilidade não é o mesmo que optar pelo convencional. A questão é o referencial de que se parte, o que se toma como verdadeira "travessura" ou trasngressão. A contravenção exige ainda mais responsabilidade, pois parte da consciência da posse da liberdade.

O que me atormenta há algum tempo é a necessidade de viver a contravenção, porque descobri que não vivê-la é não só falta de fidelidade a mim como também falta de responsabilidade com a esperança humana de um mundo melhor. Viver o convencional nos dias de hoje é falta de respeito com o que há de mais belo no mundo.

Um comentário:

  1. Seu texto me fez pensar muito em Sartre, Nietsche e Dostoievski... A liberdade para ser o Super Homem, para viver com intensidade, e a imensa responsabilidade que a liberdade pressupõe.

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