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segunda-feira, 18 de julho de 2016
O que emerge do lago profundo?
O que emerge do lago profundo? As linhas frágeis que costuraram
os tecidos de uma vida. A agulha torta que um dia passeou entre suas poucas
linhas engarranchando tudo com uma desordem despropositada. Os retratos em
papel velho que desbotaram as dores de uma memória confusa. Algumas notas
musicais vazias que sobraram daquela canção mal tocada no violão desafinado.
Salivas que voaram sem cuidado e empestaram o ar de fumaça. Sorrisos que se esqueceram
perdidos na graça de outrem. Aquela dança dos tambores que se queria
interminável. O gato preto que nunca deu azar, mas sumiu em busca de uma comida
mais quente. Os retalhos coloridos que não se descosturavam alegremente. O cansaço das notícias que ainda não
sabem que são velhices. A formiga que boiou n’água antes de carregar sua folha
até a casinha. Todos os anéis de prata tortos e perdidos nas horas correiras.
Coraçõezinhos cor de rosa absolutizantes de uma delicadeza insuportável. Dedos
mal educados que sabiam gargalhar. Temores daquele dia em que a alma pediu para
ser pedra. Rodinhas do patins tímido das pernas gigantes. Mil tesouras sem
corte e sem graça. A queda livre que entrou no estômago. As lágrimas
disfuncionais. Os eternos cachorros que brincavam no quintal das roupas
dependuradas. O tempo vagaroso. O tempo cego. O tempo impaciente. A força vã. A força geradora. A força . As delícias. As delícias.As delícias.
quinta-feira, 28 de abril de 2016
Saudades da minha avó
Tenho saudade daquelas tardes vazias em que o tempo se
suspendia naquela imensidão de sala para tão poucas palavras... A cadeira de
rodas girando no azulejo amarelado daquele chão descombinado com a pintura grotesca
das paredes... Os papagaios velhos que já não conseguiam acompanhar tão bem a
lucidez daquela senhora, cujas rugas tomavam mais o corpo do que o próprio
rosto...
Aqueles olhos de sobrancelhas arqueadas, que resistiam a se
quedar com o tempo, eram o único reflexo da verdadeira imensidão de lucidez que
ela trazia por dentro. Minha avó... minha avó que não era vovozinha. Na minha
tenra infância, os seus biscoitos de queijo quentinhos eram quase mais doces
que a sua voz. Foi na idade adulta que fizemos nossos laços, foi naqueles dias
em que eu compreendia cada vez mais nitidamente o significado da palavra
solidão e me compadecia da tragédia humana dessa triste realidade que um dia há
de açoitar a todos nós de algum modo. Solidão, lava que cobre tudo e nos sorri
seus dentes de chumbo, que fica muito bem na poesia e muito dura na realidade.
Aquelas pequeninas xícaras velhas esmaltadas sobre a bandeja da cozinha,
esperando pelo café amargo que serviria as visitas, iam ficando cada vez mais
sem uso. As cadeiras descombinadas e o sofá feio já não precisavam sair do
lugar para encaixar os filhos e netos que outrora enchiam a casa em noites de
domingo. Os papagaios velhos continuavam ali envelhecendo, cantando pouco e mal
com a rouquidão que o tempo trazia, mal servindo, portanto, para substituir as visitas
cada vez mais escassas. Me lembro quando aquela televisão tão odiada por ela começou
a ser ligada. Primeiro, uma vez por mês. Depois, uma vez por semana. De
repente, minha avó já era capaz de passar por cima de toda a sua ira contra a
televisão e aceitá-la como companhia possível. O amargo ia ficando mais doce,
tão doce que um dia presentificou-se de vez em uma diabetes que não queria mais
partir.
Eu atravessava aquela trilha que levava da minha casa para
esse recanto de minha avó e no meio da trilha, ao cruzar o portãozinho
enferrujado, me sentia atravessar o portal para o universo paralelo. Como
naqueles filmes de fantasia, mas muito mais intenso. Porque os filmes, afinal,
nunca chegam aos pés da imensidão da vida. A fantasia era cheia de remendos em
seus bordados delicados, que deixavam transparecer o quanto de delicadeza pode
haver mesmo na mais dura das vidas. Aqueles paninhos bordados em linhas
coloridas, com riscos de caneta azul nos fundos dos desenhos que ela fazia por
conta própria e que acabava não submetendo-se por conta própria também, cobriam
a geladeira, a banqueta de telefone fora de moda, a mesinha da imagem da santa,
o armário da - tão odiada - TV e a penteadeira recheada de perfumes ressecados
do quarto. Quando eu atravessava aquele portal, o universo particular no qual a
solidão grudava-se como lava em cada pequeno canto, mais parecia um espaço da
conciliação da dor com a paz. A solidão ali, tão espreita, dava tapinhas em
nossas costas. Esfriava os nossos pés. Enchia o ar de silêncio. Mas a gente
gostava de olhar pra ela assim: bem de frente. Ela era encarada nos olhos
abertos e arqueados de minha avó. E nos meus olhos desconfiados. E a gente
devolvia bofetões na cara da solidão. Porque ríamos dos causos felizes e dos
tristes também. Porque o café meio velho e o pão meio duro da latinha era nosso
banquete naqueles poucos momentos em que poderíamos nos alegrar pela
simplicidade de nos termos ali, uma à outra, para não sermos nem ternas, nem
rudes, nem belas, nem feias, nem sagazes e nem bobas.
Podíamos nos alegrar em ver a amargura cortante da vida em
toda a sua crueza refletida uma nos olhos da outra, porque a gente não
precisava fingir felicidade e nem chorar pelas coisas tristes. Precisávamos
apenas deixar o tempo se arrastar o quanto fosse preciso para fazer o seu
trabalho de ir lavando... De ir lavando, lavando e lavando aquelas nossas
ideias tão infestadas da poeira dos sótãos do pensamento. Ela podia insistir
para que eu não risse - pois que era verdade - que o cachorrinho preto que
pegaram da rua pra criar havia morrido de calor. Morrido assim, de repente, com
a língua pra fora, só por sentir muito calor. Morre-se de tudo nessa vida, por
que não de calor, afinal? Ela podia me
explicar que não havia nem mesmo contradição em amar as galinhas do quintal
mais do que todos os animais fofinhos juntos e, de vez em quando, fazer um
cozido de frango caipira. Ela podia me mostrar a sua coleção de chifres de
besouro como muito mais preciosa do que aquela sua caixinha de joias que ela
nunca iria usar. E eu podia entender. E a gente podia ir assim, aos pouquinhos
e do nosso jeitinho, fazendo as tardes decifrarem as contradições da vida. Por isso, vira e mexe eu tenho saudade. Saudade
do lado doce dessa rudeza nua da vida que se revelava tão possivelmente inteira
a cada travessia daquele enferrujado portal.
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