domingo, 19 de setembro de 2010

Platão, linguagem e democracia

(O texto abaixo trata-se de um trabalho para uma disciplina da faculdade)                      

Quando o pertencimento de sangue, classe social ou a competência do saber especializado deixam de contar como critério para a participação na decisão da vida em comunidade, temos a realização de uma novo princípio: o democrático. A criação do regime de isonomia realizada pelo grego Clístenes será porém a centelha não só deste grande valor político,
mas também da eclosão de uma questão filosófica que por muito tempo definirá a própria filosofia e que - ainda - nos colocará um enorme desafio político. Se todos na pólis podem dar sua opinião e se cada falar é tão legítimo quanto o outro, sendo princípio democrático justamente essa legitimidade que independe de formação especializada sobre o assunto de que se fala, a capacidade de usar a linguagem de modo a persuadir se impõe. Impõe-se também o desligamento do dizer com a verdade, do logos com o ser, da linguagem com as coisas. Segue-se daí as mais diversas relações entre os homens e a idéia de verdade, mundo real, coisas em si. E o grande problema da relação entre linguagem e política.

O choque de Platão com a morte de seu mestre Sócrates reforça o choque com a gravidade dessa cisão do logos com o ser, na medida em que este homem condenado à morte pela própria cidade demonstra ser o mais comprometido com a moralidade e o bem público. Esse incessante ato de dizer, de ser cidadão pelo falar - de ter prestígio pelo melhor discurso - inaugurado pela democracia ateniense gera contraditoriamente um descompromisso com o que é justo, bom e moral na medida em que é possivel persuadir sem estabelecer necessariamente conexão da fala com uma verdade . Platão segue seu mestre na busca da adequação do logos com o ser. Mas enquanto Sócrates o faz através do seu incansável questionamento o que é justiça, o que é piedade e outros o que é com fins a simplesmente fazer na prática o que é justo e bom, Platão vai além deste nível. Ele tira as últimas consequencias do ato filosófico de Sócrates, que é a tentativa de reunir o diverso em definições únicas, fazer as diferentes opiniões e multiplicidades se reduzirem a uma única verdade. A sede por esta verdade única, um uno a que se pudesse recorrer para alcançar os conceitos, que devem definir a essência das coisas, fazem Platão definir uma ontologia do inteligível com existência independente da multiplididade do sensível. O dualismo ontológico de Platão é erigido, portanto, no seu esforço de obter

garantias contra os profissionais do falar, do seu desejo de se libertar de tantos múltiplos, tantas opiniões que se fazem valer sem de fato estarem de acordo com as coisas reais. Pois este fazer-se valer pelo mero ludibriamento de palavras postou-se como algo muito grave, revelou-se capaz de levar os homens a grandes confusões e a absurdos, a exemplo, extremamente chocante e instigador, da condenação do grande mestre Sócrates.

A linguagem e o ser, o dizer e a verdade, o logos e as coisas, eis terrenos que a filosofia não se cansará de relacionar e realizar. O exercício da democracia é que teria levado ao grande escândalo de separação entre eles – separação da qual nasce o filosofar - ao promover uma “evolução da natureza do logos” (tal como considera Christophe Rogue). Platão relata nas Leis um tempo em que logos e ser eram unos apresentando num sonho o tempo perdido em que os pastores das montanhas, os sobreviventes do dilúvio, ao falar, diziam exatamente o ser. Em alguns textos gregos o logos por vezes é apresentado como um dom dos deuses, embora nos deuses o logos permaneça unido com o ser. De qualquer modo, o uso do dom da linguagem é um problema relacionado com a política por sua própria natureza. No mito relatado por Protágoras, a linguagem não só é um dom divino, mas também um dom que nasce relacionado com a arte da política. A doação da arte da política aos homens é a “solução definitiva” encontrada por Zeus para o risco de extinção da espécie humana que, por confusão dos próprios deuses, teria ficado despida de outros dons animais de defesa. Se os homens decorrem de um erro divino, a distribuição do pudor e da justiça apresenta-se como a melhor remediação deste “erro”. Zeus teria sido complacente ao perceber que sem o dom da política os homens jamais poderiam sobreviver, pois, na medida em que só unidos podiam se defender, sem a política acabariam por se violentarem uns aos outros e extinguiriam-se por conta própria.

É pela necessidade de estarem em comum unidade que tal dom igualmente teve de ser comum: diferentemente de todos os dons que os homens receberam, o pudor e a justiça não poderia ser distribuído desequilibradamente entre os homens. Tais dons se realizariam através do logos, dado que a construção da vida política passa pela linguagem . Trata-se de um reconhecimento do logos na política num princípio da democracia: todos devem poder falar. E é através do uso da linguagem que se realiza a arte da política.

Mas a política pela democracia cai, entretanto, numa espécie de arapuca que ela mesmo cria. Pois se é através da política que se deve decidir e realizar o que é bom para a pólis, o uso reiterado da linguagem no modo democrático gera um tal descolamento do logos que a pólis acaba por se guiar não mais em vista do bem público, mas do melhor discurso enquanto techné. A busca da verdade una exercitada por Platão será uma tentativa de evitar os desvios da pólis do que é justo, moral e bom em decorrência de melhores técnicas de retórica. Politicamente podemos dizer que este desafio que a armadilha democrática sugere está presente ainda hoje. Afora a solução de Platão, que acaba por sugerir um governo não democrático, mas guiado por filósofos, cabe-nos ainda perceber, pelos trilhos que ele percorre instigado por este problema, como a discussão filosófica da verdade e do logos, em um esquema ou não de adequação, tem profunda relação com o modo que fazemos - e o modo que desejamos fazer - política.

Se a linguagem é neutra, e assim se (re)afirma no exercício democrático, podendo ser utilizada para defender opiniões opostas, para Platão, cabe à filosofia ser a linguagem normativa que deve realizar a união entre o que é ético e o que se diz que é ético. Platão realizará a filosofia neste papel diferenciador das outras construções da linguagem dando sequência à insistência de Sócrates em mostrar a diferença entre saber e saber falar. A democracia é a pretensão de que todas as opiniões são legítimas desde que saibam falar. Na democracia saber falar basta para todo saber e Sócrates defendeu o exato contrário: o saber falar é a ruína do saber na medida em que bloqueia a busca do saber verdadeiro pela própria pretensão de que já se sabe. Platão irá argumentar que a cidade ébria de logos se torna mais suscetível a se levar por tiranias, o que seria um desembocamento contraditório da democracia.

Sócrates argumenta que a existência do saber especializado demonstra a possibilidade de o saber estar em um e não em todos. Seu argumento é reforçado pelo próprio fato das assembléias democráticas atenienses por vezes buscarem opiniões dos técnicos para decidirem sobre determinado tema. Se a própria democracia reconhece por vezes a superioridade da techné, por que considerar legítimas as opiniões da multidão em detrimento do saber especializado? No diálogo com Protágoras, Platão, através de Sócrates, reconhece uma techné da logos justamente para inverter a pretensão da legitimidade do falar da multidão. Enquanto o sofista Protágoras defende essa pretensão democrática no argumento de que a logos pode ser ensinada a qualquer um, Platão apresenta-se contra a democracia justamente pelo mesmo motivo: se a logos é uma techné, um saber especializado, deve-se recorrer não à logos da multidão, mas ao especialista. E, considerando que toda techné deve ser aplicada a fins determinados e que os fins da política é o bem da polis, então deve-se recorrer ao especialista em adequar a techné – instrumento – aos fins que se pretende.

Platão irá admitir, assim, uma techné da logos, mas de modo diferente do sofista Protágoras. O verdadeiro saber falar para Platão é o uso da logos em acordo com o ser. Admitindo a arte do falar, o logos como techné, cabe estabelecer critérios para este saber – visto que se diferencia da empiria – e relacionar esta techné a fins específicos. Daí Platão evocar na República a discussão de tais fins como dados dentro ou fora da própria techné e defender, por conseguinte, uma hierarquia de saberes e a existência de um saber supremo que estabelece os fins aos demais. Este saber supremo seria uma techné que deve dar razão às outras technés: a filosofia. O acordo com Protágoras contribui para a justificação de um governo dos filósofos: estabelecendo o logos como techné, pode-se afirmá-lo como devendo ser objeto da filosofia.

Devido à cisão entre linguagem e ser, há diversas sugestões da logos como techné além da de Platão, que são exatamente aquelas contra as quais ele se levanta e que, por isso, são apresentadas nos seus textos. Enquanto Platão está preocupado com um discurso que diga o ser, os discursos de aparência se preocupam com a utilidade do logos segundo o favor do momento. A retórica é o discurso que se esforça para agradar a multidão e é a técnica mais direta de poder. A sofística e a erística já se arrogam o dizer do ser, o que se demonstra ainda mais perigoso para a filosofia, pois embora se pautem em recursos, demonstrações e contradições inerentes à própria linguagem, tais discursos apresentam a pretensão de adequação a um saber universal e de conexão entre o logos e o ser do mesmo modo que a filosofia.

A aparência de saber, a racionalização vã, a falta de rigor nas coerções da linguagem que vencem e refutam sempre, são denunciados por Platão não só por não conduzirem a nenhum saber, mas também por serem responsáveis na geração de uma decepção. Tal decepção seria fonte de ceticismo e relativismo. Platão não se convence pela idéia do homem como medida de todas as coisas, ainda que sua idéia de uno em suas obras de maturidade cedam na ontologia do inteligível ao estabelecer maior relação deste com a sensibilidade. A mudança da concepcão do dualismo ontológico por Platão não irá em nenhum momento significar a desistência de dizer o ser. Platão não se contenta com a linguagem como mero instrumento de designação – indicação – das coisas do mundo sensível. Também a sensação de cada um sendo diferente uma da outra não estabelece diferentes realidades, pois se todos os discursos forem verdadeiros e não houver mais possibilidade de verdade, a idéia de realidade deixa de existir. Platão nega a idéia do homem como medida de todas as coisas como auto-refutável: se todos os discursos são verdadeiros, também o é aquele que diz que o homem é a medida é falso.

Independentemente de como os diferentes pensadores localizarão a questão da linguagem e do ser, cabe uma reflexão importante que herdamos de Platão acerca do uso do logos que se situa nos mesmos motivos que impulsionaram Platão em sua filosofia. A linguagem no mero exercício do falar deve ter legitimidade para estabelecer o que é bom para todos? Se não, o que determina que não se dê um mero exercício do dizer (considerando todos os perigos das diversas technés do logos) em nossa democracia? Aqui, a teoria (se encontra com a) prática.

3 comentários:

  1. Júlia Lemos faz jus ao nome do blog: "Júlia em excesso", hehe!

    Complicado, complicado... porque se formos pensar sob o ângulo de que a verdade está na linguagem e não existe um ser anterior a ela, então temos um problemão ao tratar de política.

    Júlia, hoje quis muito você por perto. Eu estava na frente do Largo do Machado esperando o ônibus pra ir pra aula. De repente olhei pra praça e vi uns policiais querendo pôr ordem em sei-lá-o-quê. A cena que vi foi como um flash: de repente uns três policiais bateram o cacetete na perna de um mendigo que estava quietinho com seu cobertor dobrado no colo, sem fazer nada! Foi muito rápido, caí em pranto, meu ônibus chegou e fui embora com esse sentimento de injustiça. Depois me arrependi muito de não ter tentado interferir. Acho que não adiantaria muita coisa, mas pelo menos eu sei que tenho quem se revoltasse por mim, se eu fosse agredida. Aí parei pra pensar nessas pessoas que estão à mercê de qualquer violência, porque não têm voz nenhuma, não tem quem as ouça, nem quem as defenda. Me deu uma revolta muito grande. Depois me veio saudade de você, porque pensei que você seria a pessoa certa para conversar e entender minha frustração e indignação. Enfim... Um desses dias em que a gente fica chocada e desiludida com o mundo...

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  3. Puxa Lian, que coisa terrível! Já é muito insuportável saber da situação dos miseráveis. mas presenciar e ver de frente é uma tortura. Pra interferir tem que ter a força certa. O mais importante é fatos como esse gerarem sentimentos de indignação, pois isso ainda me faz pensar em alguma esperança. A apatia é que seria realmente desanimadora. Essa história que vc contou me lembrou um pouco a biografia do CHe, pelo fato de ele não ter entrado na luta por um mundo melhor através de teorias nem nada e nem ele foi até a miséria, foi a miséria humana que chegou até ele em uma viagem sem qualquer pretensão social e que o indignou de forma tal que fez com que ele mudasse todo seus planos de percurso de vida. Quando, em meio a contradição que nega o homem neste sistema, nos deparamos com sentimentos de humanidade, me sinto mais esperançosa.

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