O meu pai é daqueles
que recebeu o anjo torto de Drummond e foi ser gauche na vida. Por trazer uma
voz inconformada por dentro, muito cedo partiu pra luta por um mundo melhor.
Ele estava na Amazônia numa base de guerrilha contra a ditadura militar quando minha
irmã Tati nasceu. Quando veio minha irmã Maíra, ele estava comemorando a Anistia. E, quando eu vim, refundando o Partido Comunista do Brasil.
A sua voz
inconformada buscava se elaborar na militância e nos livros. Na música clássica
e na MPB. Eu cresci ouvindo os lindos discos que ele colocava na vitrola, com a
imagem dele à volta com pilhas de livros e ouvindo o discurso sobre como não
ter uma vida mesquinha e egoísta. Mais do que ouvindo esse discurso,vendo o seu
exemplo. Ele sempre estava disposto a ir pegar as estrelas
do céu não só para nós, suas filhas, mas para todos os que precisassem. Disposto a sair de madrugada para nos buscar nas festinhas adolescentes com
direito a declamação de poesias inteiras no caminho da volta. Sua voz
inconformada nunca conseguia se conter em nos instigar a pensar, a pensar e a
pensar. E foi nos ensinando a pensar que ele corrigiu nossos erros sem nunca nos
levantar a mão.
Foi em diálogos ricos que ele nos mostrou a naturalidade no
contato com a sexualidade na adolescência. A importância de saber compartilhar com
as irmãs o quarto, os objetos pessoais, o sentimentos. A importância de buscar
um mundo em que o viver compartilhado se sobreponha à violência do eu individual
sem limites. Meu pai nos fez saber que a vida de engajamento comunitário,
político, é a mais plena de humanidade Nos fez saber
o princípio socrático de que uma vida sem exame não merece ser vivida, o
princípio timbira. de que a vida é luta e o princípio marxista de que o fim supremo
desta luta não é meramente pessoal, mas sim realizar um humanismo real na sociedade. E assim ele nos fez herdar a
sua voz inconformada.
Em mim essa voz se fez mais forte pela imagem das pilhas de livros e pela sua citação do poema de Castro Alves que sempre vinha nas dedicatórias dos livros que me dava:
Em mim essa voz se fez mais forte pela imagem das pilhas de livros e pela sua citação do poema de Castro Alves que sempre vinha nas dedicatórias dos livros que me dava:
Filhos do século das luzes!
Filhos da Grande nação!
Quando ante Deus vos mostrardes,
Tereis um livro na mão:
O livro — esse audaz guerreiro
Que conquista o mundo inteiro
Sem nunca ter Waterloo...
Eólo de pensamentos,
Que abrira a gruta dos ventos
Donde a Igualdade vooul..
Filhos da Grande nação!
Quando ante Deus vos mostrardes,
Tereis um livro na mão:
O livro — esse audaz guerreiro
Que conquista o mundo inteiro
Sem nunca ter Waterloo...
Eólo de pensamentos,
Que abrira a gruta dos ventos
Donde a Igualdade vooul..
(...)
Oh!
Bendito o que semeia
Livros... livros à mão cheia...
E manda o povo pensar!
O livro caindo n'alma
É germe — que faz a palma,
É chuva — que faz o mar.
Livros... livros à mão cheia...
E manda o povo pensar!
O livro caindo n'alma
É germe — que faz a palma,
É chuva — que faz o mar.
O meu pai gauche na vida é o meu mestre de amar: amar o comum-viver e amar o saber. Hoje, já na minha vida adulta, é o meu precioso amigo em longas
conversas não só de inconformidade, mas também de encantamento.
Obrigada por tudo isso, pai!
Obrigada por tudo isso, pai!