Quando o pertencimento de sangue, classe social ou a competência do saber especializado deixam de contar como critério para a participação na decisão da vida em comunidade, temos a realização de uma novo princípio: o democrático. A criação do regime de isonomia realizada pelo grego Clístenes será porém a centelha não só deste grande valor político,
mas também da eclosão de uma questão filosófica que por muito tempo definirá a própria filosofia e que - ainda - nos colocará um enorme desafio político. Se todos na pólis podem dar sua opinião e se cada falar é tão legítimo quanto o outro, sendo princípio democrático justamente essa legitimidade que independe de formação especializada sobre o assunto de que se fala, a capacidade de usar a linguagem de modo a persuadir se impõe. Impõe-se também o desligamento do dizer com a verdade, do logos com o ser, da linguagem com as coisas. Segue-se daí as mais diversas relações entre os homens e a idéia de verdade, mundo real, coisas em si. E o grande problema da relação entre linguagem e política.


A linguagem e o ser, o dizer e a verdade, o logos e as coisas, eis terrenos que a filosofia não se cansará de relacionar e realizar. O exercício da democracia é que teria levado ao grande escândalo de separação entre eles – separação da qual nasce o filosofar - ao promover uma “evolução da natureza do logos” (tal como considera Christophe Rogue). Platão relata nas Leis um tempo em que logos e ser eram unos apresentando num sonho o tempo perdido em que os pastores das montanhas, os sobreviventes do dilúvio, ao falar, diziam exatamente o ser. Em alguns textos gregos o logos por vezes é apresentado como um dom dos deuses, embora nos deuses o logos permaneça unido com o ser. De qualquer modo, o uso do dom da linguagem é um problema relacionado com a política por sua própria natureza. No mito relatado por Protágoras, a linguagem não só é um dom divino, mas também um dom que nasce relacionado com a arte da política. A doação da arte da política aos homens é a “solução definitiva” encontrada por Zeus para o risco de extinção da espécie humana que, por confusão dos próprios deuses, teria ficado despida de outros dons animais de defesa. Se os homens decorrem de um erro divino, a distribuição do pudor e da justiça apresenta-se como a melhor remediação deste “erro”. Zeus teria sido complacente ao perceber que sem o dom da política os homens jamais poderiam sobreviver, pois, na medida em que só unidos podiam se defender, sem a política acabariam por se violentarem uns aos outros e extinguiriam-se por conta própria.

É pela necessidade de estarem em comum unidade que tal dom igualmente teve de ser comum: diferentemente de todos os dons que os homens receberam, o pudor e a justiça não poderia ser distribuído desequilibradamente entre os homens. Tais dons se realizariam através do logos, dado que a construção da vida política passa pela linguagem . Trata-se de um reconhecimento do logos na política num princípio da democracia: todos devem poder falar. E é através do uso da linguagem que se realiza a arte da política.
Mas a política pela democracia cai, entretanto, numa espécie de arapuca que ela mesmo cria. Pois se é através da política que se deve decidir e realizar o que é bom para a pólis, o uso reiterado da linguagem no modo democrático gera um tal descolamento do logos que a pólis acaba por se guiar não mais em vista do bem público, mas do melhor discurso enquanto techné. A busca da verdade una exercitada por Platão será uma tentativa de evitar os desvios da pólis do que é justo, moral e bom em decorrência de melhores técnicas de retórica. Politicamente podemos dizer que este desafio que a armadilha democrática sugere está presente ainda hoje. Afora a solução de Platão, que acaba por sugerir um governo não democrático, mas guiado por filósofos, cabe-nos ainda perceber, pelos trilhos que ele percorre instigado por este problema, como a discussão filosófica da verdade e do logos, em um esquema ou não de adequação, tem profunda relação com o modo que fazemos - e o modo que desejamos fazer - política.
Se a linguagem é neutra, e assim se (re)afirma no exercício democrático, podendo ser utilizada para defender opiniões opostas, para Platão, cabe à filosofia ser a linguagem normativa que deve realizar a união entre o que é ético e o que se diz que é ético. Platão realizará a filosofia neste papel diferenciador das outras construções da linguagem dando sequência à insistência de Sócrates em mostrar a diferença entre saber e saber falar. A democracia é a pretensão de que todas as opiniões são legítimas desde que saibam falar. Na democracia saber falar basta para todo saber e Sócrates defendeu o exato contrário: o saber falar é a ruína do saber na medida em que bloqueia a busca do saber verdadeiro pela própria pretensão de que já se sabe. Platão irá argumentar que a cidade ébria de logos se torna mais suscetível a se levar por tiranias, o que seria um desembocamento contraditório da democracia.

Devido à cisão entre linguagem e ser, há diversas sugestões da logos como techné além da de Platão, que são exatamente aquelas contra as quais ele se levanta e que, por isso, são apresentadas nos seus textos. Enquanto Platão está preocupado com um discurso que diga o ser, os discursos de aparência se preocupam com a utilidade do logos segundo o favor do momento. A retórica é o discurso que se esforça para agradar a multidão e é a técnica mais direta de poder. A sofística e a erística já se arrogam o dizer do ser, o que se demonstra ainda mais perigoso para a filosofia, pois embora se pautem em recursos, demonstrações e contradições inerentes à própria linguagem, tais discursos apresentam a pretensão de adequação a um saber universal e de conexão entre o logos e o ser do mesmo modo que a filosofia.
A aparência de saber, a racionalização vã, a falta de rigor nas coerções da linguagem que vencem e refutam sempre, são denunciados por Platão não só por não conduzirem a nenhum saber, mas também por serem responsáveis na geração de uma decepção. Tal decepção seria fonte de ceticismo e relativismo. Platão não se convence pela idéia do homem como medida de todas as coisas, ainda que sua idéia de uno em suas obras de maturidade cedam na ontologia do inteligível ao estabelecer maior relação deste com a sensibilidade. A mudança da concepcão do dualismo ontológico por Platão não irá em nenhum momento significar a desistência de dizer o ser. Platão não se contenta com a linguagem como mero instrumento de designação – indicação – das coisas do mundo sensível. Também a sensação de cada um sendo diferente uma da outra não estabelece diferentes realidades, pois se todos os discursos forem verdadeiros e não houver mais possibilidade de verdade, a idéia de realidade deixa de existir. Platão nega a idéia do homem como medida de todas as coisas como auto-refutável: se todos os discursos são verdadeiros, também o é aquele que diz que o homem é a medida é falso.
Independentemente de como os diferentes pensadores localizarão a questão da linguagem e do ser, cabe uma reflexão importante que herdamos de Platão acerca do uso do logos que se situa nos mesmos motivos que impulsionaram Platão em sua filosofia. A linguagem no mero exercício do falar deve ter legitimidade para estabelecer o que é bom para todos? Se não, o que determina que não se dê um mero exercício do dizer (considerando todos os perigos das diversas technés do logos) em nossa democracia? Aqui, a teoria (se encontra com a) prática.