terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Via láctea dançarina!


Liberdade criativa em exercício é capaz mesmo de parir uma estrela dançarina. O caos da liberdade coletiva então... Deve parir uma constelação!

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Capitalismo, socialismo e comunismo (II)


Vou falar um pouco sobre tecnologia pra falar de tempo e liberdade. Marx me faz pensar em respirar ar novo e em liberdade mesmo tocando num assunto que a mim, particularmente, é estranho e parece distante: tecnologia. Liberdade e tecnologia: qual seria a relação?
Ao que parece, desenvolvimento de tecnologia para Marx é desenvolvimento de possibilidades de libertação do homem. Libertação da obrigatoriedade de se gastar boa parte do tempo na produção de elementos para satisfazer necessidades. Necessidades estas infinitas, pois culturalmente e diariamente construídas. Para Marx o aprimoramento da tecnologia não é mérito daqueles que a financiaram. É um ganho da humanidade como um todo, parte de uma capacidade especificamente humana - já que o homem na atividade prática não só se aprimora como também aprimora o modo de fazer tal atividade. A humanidade aprimora a tecnologia levando o homem a precisar de menos tempo para produzir. Menos tempo para produzir itens necessários deveria levar a mais tempo livre para se fazer o que quiser. Cada um tendo boa parte do tempo livre para gastar como bem queira é a verdadeira possibilidade de exercício das liberdades diversas. Homens exercendo suas liberdades provavelmente são homens gastando mais tempo desenvolvendo novas necessidades, novos prazeres, novas vidas, novas humanidades.

Hannah Arendt fez uma crítica a Marx afirmando uma intenção deste de reduzir os homens a meros animais laborans. No meu entender ele busca exatamente o contrário, pois trata não da liberdade para a maioria exercer o labor, mas sim de reduzir o tempo necessário das atividades para produção material a fim de que se reste mais tempo a todos para exercer o saber sem a segregação da práxis. Mas se o capitalismo contribui por um tempo para o desenvolvimento das forças produtivas, ele também gera possibilidades de relações de produções novas, que façam melhor uso das novas forças produtivas aprimoradas até então.


Os limites do capitalismo se encontram exatamente nas relações de produção - que já não servem ao aprimoramento da tecnologia e já não permitem o usufruto do tempo para que todos exerçam suas liberdades - pois é apropriação do tempo na sua roupagem de valor de troca, mercadoria, fetiche, lucro, em suma, apropriação não só exploradora de alguns, mas aprisionadora de toda humanidade.

Recentemente Mike Palecek, em um artigo para um site de discussão marxista, trouxe algumas informações que achei muito interessantes por demonstrarem que o capitalismo parece ter adentrado de fato numa fase em que não mais contribui para o desenvolvimento da ciência e da tecnologia. Se antes podíamos admitir que era um sistema que propiciava melhor desenvolvimento das forças produtivas, ainda que com relações de produção desumanas, hoje nem mesmo tal desenvolvimento pode ser usado para o argumento, já insuportável, das vantagens de se manter a exploração de 2/3 dos habitantes do planeta.

Crescemos com a imagem do capitalismo como sistema que traz inovação nos campos tecnológicos e científicos devido à combinação de competição e lucro. Essa receita parecia ser infalível para o estímulo a novos inventos medicinais, tecnológicos, etc... O neoliberalismo propagandeou o livre mercado como o melhor campo para o estímulo ao avanço da ciência.

Palecek afirma que tal concepção hoje não se passa de um mito e chama atenção para alguns aspectos:


1. A descoberta recente de um fóssil importantíssimo para pesquisas acerca da teoria da evolução que desde 1983 foi privado dos estudos científicos devido ao fato de ser propriedade de um colecionador, demonstrando a transformação desses tesouros históricos em meras moedas de barganha em mercados para proprietários milionários.

2. A falta de medicamentos para combater a pandemia da AIDS, principalmente na África, demonstrando a distribuição dos remédios relacionada especificamente ao lucro. O lucro com a existência da AIDS, através da venda de amenizadores dos sintomas, também seria um desestímulo para a busca de vacinas eficazes contra a doença. O mesmo também ocorre com doenças como o câncer. Palecek afirma que a descoberta da molécula DCA como eficaz para a morte de células cancerígenas na University of Alberta não foi um estímulo para pesquisas privadas diante da impossibilidade de se patentear o DCA. A necessidade de se obter lucro com o desenvolvimento de novos medicamentos muitas vezes acaba por impedir a descoberta de desenvolvimento de possíveis tratamentos eficazes. A mão invisível e o estado mínimo do neoliberalismo não são mesmo um conto de fadas.

3. O boicote do desenvolvimento do carro elétrico, demonstrado no documentário "Who Killed the Electric Car". A tecnologia de bateria NiMH, por hidrogênio, teria sido patenteada pela compania de petróleo Chevron, que recusa a venda da tecnologia para estudos científicos e permite apenas a produção de carros híbridos.

4. A rapidez do governo americano, temeroso dos nazistas, no desenvolvimento da tecnologia de fissão nuclear e construção da bomba atômica, em detrimento do setor privado.

Claro que a bomba atômica não foi uma descoberta para aprimoramento da humanidade, mas o desenvolvimento da tecnologia de fissão nuclear abriu caminhos para novas formas de uso de energia, com menor exploração do meio ambiente.

O que importa salientar neste artigo do Palecek é como a competição possui uma dupla face. Pode, por um lado, servir como motivadora do desenvolvimento de novos produtos e, por outro lado, servir para impedir de virem a tona novas descobertas importantes. Se por um lado a posse de patentes pode ser uma maneira eficaz de estimular novos estudos e avanços ela também pode ser uma barreira na medida em que coloca no escuro confidencial diversas descobertas, impedindo um grupo de colaborar no projeto do outro e avançarem a ciência a favor da humanidade.


As crises no capitalismo têm demonstrado que o neoliberalismo é sempre descartado e o sistema público é acionado quando se trata de buscar soluções amenizadoras. A importância de um planejamento estratégico que vise todo o conjunto da sociedade é bastante valorizada quando o capitalismo precisa de um fôlego para continuar existindo. O que me faz lembrar, inevitavelmente, a experiência soviética.

Não se trata de desconsiderar que os desejos da burocracia no sistema soviético também consistiu em barreiras diversas e nem de exaltar um modelo como perfeito. Mas de salientar em que medida alguns aspectos podem ser tomados hoje como exemplos de novos paradigmas na construção de uma realidade nova. Sem o velho chavão de que o socialismo simplesmente não deu certo, podemos citar muitos fatores de sucesso extremamente relevantesdo ponto de vista estrutural.


Uma economia planejada nacionalmente como foi a soviética pôde fazer com que um país semi-feudal chegasse a concorrer em pé de igualdade no que tange à inovações tecnológicas do ícone capitalista mundial. O lançamento do primeiro satélite artificial na órbita da Terra, o Sputinik 1, foi realizado pela URSS em 1957: a primeira vez que o homem foi ao espaço e que se construiu uma sede espacial. Astronomia, química, matemática, os russos conseguiram levar pra bem longe as descobertas científicas através de um caminho alternativo à competição. Construíram um modelo de desenvolvimento de todo o seu território, sem o risco de concentrações urbanas ou desigualdades regionais excepcionais. Priorizaram a criação de possibilidades para expansão do sistema educacional, estatizando-o. Estatizaram também as patentes e os segredos coorporativos que obstruem avanços da ciência.

Sobre as diversas atrocidades que ocorreram  não é preciso citar. Os publicitários do neoliberalismo já espalharam por aí. Personalismo, radicalismo, assassinato de cientistas, enclausuramento de idéias, liberdades e expressões artísticas, perseguições, enfim... De fato existiu a dureza de um Estado no afã de erguer todos os sucessos citados anteriormente, resistir e vencer o nazismo e vencer, ainda, as ilusões do sistema de mercado impregnadas em todo o resto do mundo.

Mas pode-se dizer que o socialismo não funcionou por conta da experiência soviética? O capitalismo funciona? O que é socialismo? Que mundo queremos? Se as opiniões do velho Marx ainda nos valem, a pergunta que se coloca agora é o que fazer com tanta tecnologia alcançada. Quais as possibilidades de sociedade a tecnologia nos coloca? Quais as relações de produção e de vivência humana somos capazes de construir? O que o momento nos permite começar hoje?

Eu também não sei as respostas. Mas tenho um sonho.

(Continua...)

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Uva e arte


Ontem à noite senti um cheiro gostoso de uva niágara na cozinha logo que cheguei. Foi quando o natal começou. Lembranças das expectativas de infância para passar a festa em São Paulo, com a minha família por parte de mãe. As celebrações sempre aconteciam na casa do meu avô Arnaldo, um ator magnífico e pessoa única. Por ser essa minha família cheia de artistas, a noite do natal sempre foi o momento de ver uma prima declamar um poema, o outro tio apresentar uma esquete, o outro contar piada, a Maíra cantar e os primos, juntos, apresentarem uma pecinha de teatro. Hoje não há mais tanta exaltação. Algo simplesmente morreu com o tempo. Mas viajo amanhã cedo pra reencontrar essas pessoas lindas que me ensinaram a ter necessidade de respirar arte. Um amor que se exerce apenas no natal, quando nos encontramos. E que dura o ano inteiro, pois já está impregnado em mim desde a infância em forma de música, cores, drama e poesia.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Capitalismo, socialismo e comunismo (I)




A queda do muro de Berlim ou o fim da URSS nunca me pareceram boas justificativas para a afirmação de que o socialismo e o sonho por um mundo melhor tenham chegado ao fim. Acho prematuro historicamente e simplificador afirmar que o socialismo morreu ou comprovou sua inviabilidade por suas falhas diversas nas experiências vividas. Também me impressiona a suposição que transparece nas reticências que imagino ter na afirmação de que o socialismo não deu certo: a de que o capitalismo sim teria se comprovado como um sistema econômico-político de sucesso. Nunca se afirma, ao descartar a possibilidade do socialismo, que o capitalismo também não deu certo. Gostaria de acreditar que a exaltação ou apatia em relação ao contexto capitalista se desse somente por aqueles que de fato lucram com esse sistema. Mas tenho que admitir, infelizmente, que a descrença no socialismo como alternativa parte até mesmo daqueles que se indignam com as conseqüências de uma organização social que se pauta sempre pelo capital.

Diante desse fato, acho que a primeira questão que deveria ser levada em conta não é a alternativa ao capitalismo e sim a realidade dele. Alguém em sã consciência poderia concordar que este sistema que mantém 2/3 da população na miséria deu certo? Que é um sucesso? A não ser aqueles que estão cegos por sua individualidade de vantagens ou pelas ideologias próprias do mercado, ninguém poderia. Estaríamos então diante de uma única afirmação passível de ser consenso: bom ou não, o capitalismo se instaurou e se firmou. Solidificou-se de tal forma que parece loucura acreditar que irá simplesmente desaparecer tal como os sistemas anteriores. Na minha opinião só mesmo o velho Marx pode demonstrar que esse devaneio não é ilusório e que no capitalismo tudo que é sólido, um dia, começa a se desmanchar no ar.


Poucos como Marx acreditaram tanto na necessidade do alto desenvolvimento do capitalismo no mundo para que se tivesse um dia uma organização econômica e política mais humana e menos animal. Embora Marx tenha defendido, em uma carta-resposta ao seu crítico Annenkov, que talvez nem todos os países precisassem passar pelo capitalismo, ele considerou que a existência deste sistema por muito tempo no planeta era não só a realidade possível como também indispensável a fim de desenvolver diversos aspectos que um dia tornasse a si mesmo (ao próprio capitalismo) completamente desnecessário e também insustentável. Esse posicionamento de Marx gerou tantas interpretações quanto são as correntes de esquerda, centro ou direita que se distribuíram no mundo: Eduard Bernstein foi o pai da social-democracia, Kautsky pai do economicismo, Lênin da esquerda política revolucionária, Stálin da ditadura tecnicista, Trótsky do internacionalismo, Gramsci da transformação pela educação, Korsch do movimento autogestionário, etc, etc, etc. Embora todas essas correntes se encontrem em algum ponto, elas defendem práticas tão diversas que me levam a pensar como é possível afirmar que o socialismo simplesmente não deu certo. Não seria preciso distinguir, antes de mais nada, de que tipo de socialismo está se falando ao se confirmar sua falência? Além do mais, considerando que esteja se tratando da experiência soviética, será mesmo possível dizer que não deu certo ou não teve sucesso simplesmente porque foi engolida pelo capitalismo?

Trata-se da compreensão que se tem do que é, afinal, sucesso. O velho jogo de linguagem de que falou Wittgenstein pode justificar tanta confusão que, na prática, leva a decisões e posicionamentos políticos lamentáveis. Se falarmos em sucesso do ponto de vista de permanência temporal ou vitória sobre o capitalismo mundial, até podemos concordar. Mas antes é preciso dizer de que tipo de sucesso se está falando. Porque o jogo de linguagem para este significante irá variar nas diversas complexidades sociais: suprimento de necessidades sociais a nível animal, suprimento de necessidades além das animais, exercício da liberdade, participação política, qualidade de vida, desenvolvimento da ciência, tecnologia, nível educacional, interação com o meio ambiente natural, dentre outros.

Marx não defendeu que o Estado como aparelho político de sustentação da burguesia terminaria com a revolução porque seria destruído, mas sim que tal aparato simplesmente desapareceria com o tempo e daria lugar a um outro sistema, o comunismo. Como em sua opinião esse desaparecimento seria gradativo, chegaria o momento em que uma revolução far-se-ia necessária no intuito de acelerar o processo. A revolução não seria o fim do capitalismo e início do comunismo, mas sim a passagem para um sistema entre sistemas. O socialismo seria como um sistema de passagem, em que hora se pareceria mais capitalista e hora se afirmaria mais como possibilitador do comunismo. Não há ditadura do proletariado no comunismo de Marx, já que não há classes neste sistema.

Penso que as diversas discussões em torno da obra de Marx se dá justamente acerca do que seria tal gradação. Embora eu não tenha uma opinião fechada acerca dessa questão, considero ter compreendido em meus estudos que o ponto nodal acerca de tal gradação se dá em torno da compreensão dos conceitos forças de produção e relações de produção, mais especificamente, nos (não)limites entre tais conceitos e na forma como a superestrutura social adentra a infraestrutura por meio das relações de produção.

Podemos dizer que a experiência de socialismo no leste europeu dos últimos anos, sob determinados moldes de interpretação do que seja socialismo, sucumbiu. Quanto ao sucesso desta experiência, em comparação à Marx e ao capitalismo, é um outro debate. Falarei sobre isso no próximo texto para não ficar muito extenso.

Mas antes quero dizer algo: as minhas maiores motivações para pesquisar esse assunto são duas. Uma é social, relacionada à minha indignação com tanta desigualdade e miséria. A outra é bem pessoal, relacionada ao meu desejo de direito à preguiça, ao ócio, ao livre exercício dos prazeres, do não aprisionamento utilitarista das minhas capacidades e desejos. Embora essa segunda motivação seja mais individual, ela também não deixa de ser coletiva. A realização do ser em sua humanidade só pode mesmo se dar quando a humanidade se realizar nos seres, quer dizer, do ponto de vista humano só é possível realizar a máxima libertação e afastamento da condição animalesca quando as necessidades de comer, beber, se vestir, ter abrigo já não forem problemas que demandem tempo a ser resolvido.

Nisso Marx é apaixonante. Ele é um filósofo da práxis que trata do tempo em todos os prismas: materialidade, invólucro, valor, fetiche, exploração, desigualdade e possibilidade de liberdade na relação do homem em ação. Marx estudou a realidade, de fato, do tempo. E é o tempo que envolve, no final das contas, a possibilidade de se poder construir e dar um sentido à vida, não só à minha vida, mas à de toda a humanidade.

(Continua...)

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Roupa no varal



 Minha mãe vive tentando trocar de lugar o varal do quintal para ele ficar mais escondido das visitas. Não concordo. Sempre achei lindo as roupas ventando no varal. Gosto de ver que a vida está latente na casa, que o cachorro está latindo atrapalhando a ouvir tv e que as crianças grudaram na parede do quarto o desenho que fizeram. Não que eu goste de toalha molhada em cima da cama e roupa suja no chão. Mas me incomoda uma casa que não interage com a vida dos seus moradores.  

domingo, 13 de dezembro de 2009

Liberdade e contravenção


Trago em mim desde muito cedo um sentimento que não sei nomear e que não sei dizer quando foi que começou a me atormentar. Nunca fui uma criança travessa, dessas de subir nos galhos mais altos das árvores ou correr desgoverna-damente arriscando ralar o joelho em cima da ferida antiga. Nem de fugir da aula para ir à feira agropecuária da cidade ou experimentar cigarro escondido. Mas dentro da minha retidão de comportamento, da boa e "educada" menina, nunca faltou energia e intensidade para a contravenção.

O que ocorreu por um bom tempo foi um atraso ou confusão em saber direcionar essa intensidade que vive querendo explodir de alguma forma reconhecidamente fora das "regras". Talvez o tormento tenha surgido mais tarde porque nunca tive uma educação muito conveniente com o padrão geral. Meu pai matou o Papai Noel antes mesmo que eu conhecesse de fato a fábula de natal. Minha mãe não fazia a mínima questão de me cobrar frequência na escola e boas notas. Eles estavam muito preocupados e ocupados em construir estratégias que pudessem acelerar a derrocada do perverso sistema capitalista. E disto sim faziam questão: demonstrar para nós, as filhas, tal perversidade do capitalismo e a necessidade de se posicionar e lutar por seu fracasso inevitável. Por um bom tempo a minha satisfação em nadar contra a corrente ou "matar" meus pais foi seguir a cartilha da disciplina de uma aluna exemplar e ter uma religião rígida.


Embora tenham existido orientações firmes, meus pais me deramliberdade de ação, decisão e posição   desde a infância. Por isso veio tão cedo a noção de responsabilidade. Não só por não saber o que fazer com o presente que ganhei já na maternidade quanto por não saber como romper com o cordão umbilical. Mas houve algum momento em que a opção por uma vida certinha e convencional deixou de ser a melhor que eu pudesse fazer com essa liberdade. Houve um momento em que seguir o caminho planejado nos moldes de um "futuro promissor", planejado cuidadosamente dentro das receitas padrões, passou a significar para mim um enorme risco de não viver - de verdade -  e de não conhecer todas as complexidades humanas. E de não contribuir com o que talvez eu tenha de melhor. Talvez porque eu tenha me dado conta de fato sobre o que acredito: que não se vive duas vezes. Ou talvez porque eu tenha entendido a diferença positiva entre convenção e contravenção social .Ou  ainda talvez entendido por que é que o homem de barbas brancas que meus pais fizeram questão de fazer com que eu acreditarsse tenha sido Marx e não Papai Noel. Só sei que, agora, optar pelo cotidiano socialmente comum e de valores mesquinhos passou a ser um risco enorme.

Risco de simplificar os signos e significados sem combinações exatas,  descartar um mundo cheio de possibilidades, cores, sons e desejos por um espelho artificial, encaixar o cotidiano em uma fôrma que não é a mais bonita e, muito menos, a mais promissora e segura. Risco de ratificar a harmonização forçada de uma realidade cheia de hipocrisias e recalques.

A escolha pela disciplina quando da minha posse prematura da liberdade se deu por pura rebeldia. Mas me levou a uma descoberta importante: a de que ser livre não é viver em  um mundo sem regras. Ser livre é viver e permitir viver com intensidade tudo aquilo que nos faz mais humanos , que nos realiza profundamente em nossa individualidade e coletividade.

Houve um momento em que descobri que optar por ter disciplina e responsabilidade não é o mesmo que optar pelo convencional. A questão é o referencial de que se parte, o que se toma como verdadeira "travessura" ou trasngressão. A contravenção exige ainda mais responsabilidade, pois parte da consciência da posse da liberdade.

O que me atormenta há algum tempo é a necessidade de viver a contravenção, porque descobri que não vivê-la é não só falta de fidelidade a mim como também falta de responsabilidade com a esperança humana de um mundo melhor. Viver o convencional nos dias de hoje é falta de respeito com o que há de mais belo no mundo.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Transe em Chico



Podem me chamar de conservadora, nostálgica ou desatenta às novas criações musicais. Mas eu não consigo parar de ouvir Chico. De novo. O pior, ou melhor, é que descobri umas praticamente inéditas para mim, quer dizer, já tinha escutado, mas nunca ouvido de verdade. Algumas bossas muito gostosas como “Lígia” (uma ironia bem melancólica), “Januária”, (uma delícia de cantar), “Desencontro” (doííída...mas não choro), “Pois é” (essa eu acho que ele fez juntamente com o Tom). “Romance”, que é muito linda...

Apesar do orgasmo musical que “Construção” traz naquele arranjo que começa lento e fica cheio de pressa no final, algo simplesmente incomparável, tem dias que estou mais pra bossa mesmo, querendo uma emoção mais contida. Emoção mais romântica também. Porque “Construção” é toda a raiva desse mundo se exalando, parece que a música tem até um odor sufocante e uma imagem turva. Bossa é para aquelas manhãs em que o dia não quer acordar e que nada pede atitudes bruscas ou revolta, mas simplesmente uma tristeza orgulhosa.

Tem música do Chico pra quase todos os sentimentos que me aparecem. Aquela do “sonho medonho”, nem sei o nome dela, é pura vingança. Não precisa chegar a se vingar de fato, é só ouvir a música e cantar bem alto. Pra todas as minhas lembranças tem um Chico Buarque pra ser tema de fundo, pra contar exatamente o que se passou. E é mesmo melhor sofrer “em dó menor” como ele diz. Até os infiéis podem se redimir ao ouvirem que “mesmo sendo errados os amantes, seus amores serão bons”. As canções são bonitas, não importa.

Esse velho Chico tem tanta música de sublimação que não dá pra enumerar. “Roda-viva” figura muito bem aqueles momentos em que simplesmente nos sentimos impotentes e limitados com o correr das coisas que, já dizia outro poeta, “embrulha tudo” pedindo coragem. “Rosa-dos-Ventos” é de chorar, é a música da revolução acontecendo. Vejo até a multidão furiosa inundando tudo. Não pode haver nada mais lindo. As românticas já não posso mais ouvir, estão como um disco riscado e é melhor dar um tempo. Mas eu não poderia deixar de mencionar “O que será”. Que será? E “Cecília’. Na sua presença, palavras são brutas...

Chico pra mim não tem nada a ver com o que chamam de “Cult” (alguns) ou utrapassado (outros) ou fase (outros outros). Simplesmente povoa muito a minha vida, assim como tanta coisa musical boa que também existe por aí.

Música pra mim é transe, tem que torcer a alma. Por isso pouca coisa me irrita tanto quanto interromper um orgasmo musical meu, ainda que silencioso, abaixando ou desligando o som. Seja Chico ou outro entorpecente.